Quando, em 1991, a
escritora italiana Elena Ferrante publicou o seu primeiro romance, Um Estranho amor, deveria estar longe de
imaginar o tumulto que a sua obra causaria, inicialmente em Itália e depois em
todos os países onde foi sendo traduzida. Porque, à medida que o livro se
ia tornando um sucesso de vendas, os leitores foram-se apercebendo de duas
coisas: primeiro, Elena Ferrante era apenas um pseudónimo; segundo, a autora
recusava divulgar o seu verdadeiro nome. E se este facto por si só não é de
estranhar (afinal, por alguma razão se opta por escrever sob pseudónimo), o
mais desconcertante é que, a acompanhar esta recusa, Elena Ferrante também se
negava a divulgar um rosto e uma identidade.
Enquanto o sucesso se
mantinha, merecendo inclusive uma adaptação cinematográfica pelo realizador
italiano Mario Martone, em 1995, muitas interrogações se foram levantando: quem
é Elena Ferrante? Será um homem ou uma mulher? Será italiana? Porque se recusa
a “dar a cara”?
A resposta a esta última
questão é-nos dada pela própria Ferrante: “Não
tenciono fazer nada em relação a Um Estranho Amor, nada que implique o compromisso público da minha pessoa. Já fiz o
suficiente por essa longa história: escrevi-a; se o livro valer alguma coisa,
isso deverá bastar. Não participarei em debates e conferências, se me
convidarem. Não irei receber prémios, se mos quiserem dar. Nunca promoverei o
livro, sobretudo na televisão, nem em Itália nem eventualmente no estrangeiro.[...] Eu
acredito que os livros não precisam dos seus autores para nada, depois de
escritos. Se tiverem alguma coisa para contar, mais cedo ou mais tarde
encontrarão os seus leitores; se não, não.” (in Elena Ferrante, Escombros, Relógio D’Água, 2016).
Nas várias entrevistas
concedidas (apenas por escrito e por intermédio dos seus editores), ou nas
cartas a que respondeu (e que se encontram reunidas no livro Escombros, publicado em Portugal em 2016,
pela editora Relógio D’Água), a escritora sempre afirmou que a obra é a única
parte que interessa de um escritor e que nunca estaria presente em qualquer
sessão de promoção do livro porque isso equivaleria a promover-se a si própria
e não à obra. É da obra que os leitores têm de gostar, não de quem a produz.
Quando a jornalista
portuguesa Isabel Lucas, que a entrevistou para o jornal Público, em 2015, lhe perguntou “Quem
é a Elena Ferrante escritora? Como a definiria?”, responderia “Elena Ferrante? Treze letras, nem mais nem
menos. A sua definição está toda contida nelas.”.
Ao primeiro livro
seguiram-se Os Dias do Abandono
(também adaptado ao cinema, por Roberto Faenza) e A Filha Obscura. Estes três romances foram editados em Portugal num
único volume sob o título Crónicas do Mal
de Amor, em 2014.
O sucesso mantinha-se e
o mistério adensava-se. A publicação do seu quarto romance, A amiga genial, uma obra que, por razões editoriais, foi dividida
em 4 volumes e que cedo se transformou num best
seller e livro de culto, veio realçar a insustentabilidade de se continuar
sem saber quem é a pessoa que se “esconde” por detrás deste êxito.
Jornalistas, biógrafos,
investigadores puseram mãos à obra e encetaram uma verdadeira demanda, na ânsia
de finalmente lhe atribuírem um rosto, uma identidade, uma personalidade.
Se a todos pareceu
consensual que a escolha do nome Elena
Ferrante é uma homenagem à escritora italiana Elsa Morante, facto, aliás, nunca confirmado nem desmentido pela própria Ferrante nas entrevistas
concedidas, já a procura da verdadeira identidade produziu resultados muito díspares,
alguns defenderam até a hipótese de ser um dos realizadores que adaptaram as
suas primeiras obras. Nos últimos meses, começou a surgir com alguma força a
convicção de Elena Ferrante ser a escritora italiana Anita Raja, ou o seu
marido, o escritor Domenico Starnone.
O mais curioso é que, quando
foram sendo divulgadas estas revelações, de forma mais ou menos sensacionalista
(ou pretensas revelações, pois a própria Anita Raja não o desmentiu nem
confirmou...), alguns leitores afirmaram não estar interessados nesta polémica,
que admirar uma obra e o escritor que a produziu é também respeitar as suas
vontades e opções.
A Amiga Genial, também conhecido como O Quarteto de Nápoles (embora a autora sempre tenha frisado que se
trata de apenas um romance dividido em quatro partes), é a história de uma
amizade que percorre várias décadas, que começa com o primeiro encontro entre
duas crianças de 6 anos, num bairro popular nos arredores de Nápoles, Elena
Greco (Lenù) e Raffaella Cerullo (Lina para todos, Lila para Lenù), até ao
misterioso desaparecimento da segunda, quando ambas têm 66 anos. Ao
desaparecimento de Lila, Lenù responde escrevendo a história dessa amizade. A
história é então narrada na primeira pessoa por Lenú, a que das duas se pode
considerar a certinha, sossegada, estudiosa e muito inteligente, a que vai para
a universidade e se torna uma escritora de sucesso em Itália e no estrangeiro;
Lila é o seu oposto, uma menina igualmente inteligente, mas com uma personagem
irascível e rebelde, que ajuda muitas vezes a esconder o seu brilhantismo, e
que preferiu não estudar e continuar a vida no bairro. Da infância à
adolescência, da juventude à idade adulta, e desta até à velhice, A Amiga Genial é a narrativa de uma
estranha, hipnótica e visceral amizade, feita de afetos e cumplicidades, mas
também de antagonismos e rivalidades.
A
Amiga Genial, História do Novo Nome, História de quem vai e de quem fica e História da Menina Perdida são os
títulos de cada um dos quatro volumes.
São muitas as
personagens que povoam este romance, além das duas protagonistas: as respetivas
famílias (e como são grandes as famílias napolitanas!), os vizinhos, os colegas
de escola, da faculdade, do trabalho; os negócios, aqui e ali a presença da
Máfia. Mas é sobretudo a cidade de Nápoles, e em concreto o pequeno bairro em
que a maior parte da narrativa acontece, e também as mulheres que se tornam as
principais personagens deste longo romance que nos prende do princípio ao fim.
Já em 2017, numa
iniciativa da Livraria Bertrand, o último volume do romance, História da Menina Perdida, foi o
vencedor do Prémio Livro do Ano Bertrand.
(T.A.)
Sem comentários:
Enviar um comentário