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História

21 de março de 2020

Boccaccio, a Peste Negra e o Doutor Ricardo Jorge

Giovanni Boccaccio
(por Andrea del Castagno, San Godenzo 1421 - Florença, 1457)

“Já tinha chegado o ano de 1348 da fecunda encarnação do filho de Deus, quando a cidade de Florença, nobre, entre as mais famosas da Itália, foi vítima da mortal epidemia. Fosse a peste obra de influências astrais ou a consequência das nossas iniquidades e que Deus, por sua justa cólera a tivesse precipitado sobre os homens, como punição dos seus crimes, a verdade é que ela se havia declarado alguns anos antes nos países do Oriente, onde arrastara para a perda inúmeras vídas humanas. Depois, prosseguindo a sua marcha sem se deter, propagou-se, para nosso mal, na direcção do Ocidente. Todas as medidas sanitárias foram sem efeito. Por mais que os guardas especialmente encarregados disso limpassem a cidade dos montes de imundície, por mais que se proibisse a entrada a todos os doentes e se multiplicassem as prescrições de higiene, por mais que se recorresse às súplicas e às orações [...], nada deu resultado. Logo nos primeiros dias primaveris do ano a que me referi, o terrível flagelo começou, de maneira surpreendente, a manifestar as suas dolorosas devastações.
[...]
A intensidade da epidemia aumentou pelo facto de os doentes contagiarem, no seu contacto diário, os indivíduos ainda sãos, tal como o fogo quando se aproxima de uma porção de matérias secas ou gordas. E o que ainda propagou mais o desastre foi não só o facto de a prática com os doentes comunicar o mal e dar a morte às pessoas sãs, mas o simples contacto com roupas ou o que quer que fosse que os pestíferos tivessem tocado ou manejado, pois através de tais objectos logo a peste se transmitia a quem deles se servisse.
[...]
Alguns pensavam que uma vida sóbria e a abstenção de tudo o que fosse supérfluo se impunham para combater ataque tão terrível. Formavam pois a sua brigada e viviam afastados dos outros. Agrupados e reclusos em casas onde não havia doentes e onde a vida era mais agradável, usando com a maior moderação comidas delicadas e vinhos requintados, [...] não deixando ninguém falar-lhes, recusando-se a ouvir qualquer notícia vinda do exterior a respeito de mortes ou doenças, passavam o tempo a ouvir música ou entretidos com outros prazeres castos.”
Boccaccio, Decameron
(edição portuguesa traduzida por Urbano Tavares Rodrigues para o Círculo de Leitores, s. d.)

Assim é relatada a Peste Negra por Giovanni Boccaccio (Toscânia, 1313-1375), o poeta e humanista florentino que, entre 1348 e 1353, escreveu a obra Decameron, um livro estruturado em cem novelas que sete raparigas e três rapazes contaram durante dez dias. Estes dez jovens estão abrigados numa vila isolada de Florença para fugir da Peste Negra, que então afligia a cidade.

Decameron é um verdadeiro documentário acerca da epidemia que devastava o Ocidente, apresentando e caracterizando a doença e as suas manifestações, evolução e sintomas, a ineficácia da religião católica e de uma medicina quase ou totalmente impotente, as feições, os sentimentos, os costumes e as ideias da Itália do século XIV, bem como a reação das pessoas à doença e à perspectiva da morte. É considerado o primeiro livro realista da literatura, um marco na rutura entre a moral medieval, em que se valorizava o amor espiritual, e o humanismo, iniciando o registo dos valores terrenos; nele, não é mais o divino, mas a natureza que dita o móvel da conduta do homem. Nas palavras de Urbano Tavares Rodrigues, Boccaccio situou-se “entre a alma medieval moribunda e a consciência renascentista”.


Peste Negra é o nome por que ficou conhecida uma das mais devastadoras pandemias da história humana, ocorrida no século XIV e que resultou na morte de 75 a 200 milhões de pessoas. Numa época ainda distante das descobertas científicas na área da Medicina e Farmácia do século XIX, muito antes de Pasteur, Koch ou Flemming terem contribuído para a redução da mortalidade e a criação de vacinas, apenas no continente europeu estima-se que a Peste Negra tenha vitimado pelo menos um terço da população, acontecendo o pico da doença entre os anos de 1347 e 1350.
Originária das feitorias genovesas de Caffa, na Crimeia (Mar Negro), a Peste Negra chegou ao Ocidente no ano de 1347, trazida pelos mercadores que, à medida que aportavam em várias cidades europeias (cujas condições higiénico-sanitárias eram muito precárias, com ruas cheias de lixo e esgotos a céu aberto), iam contaminando as respetivas populações, espalhando-se a doença por toda a Europa até 1350.
Após esta data, e até final do século XIV, a doença permaneceu endémica em toda a Europa, manifestando-se em crises de maior violência cada dez ou quinze anos e continuando a aparecer de forma intermitente e em pequena escala até praticamente desaparecer do continente nos inícios do século XIX.
Hoje esta praga ocorre em menos de 5000 pessoas por ano em todo o mundo. Desde a década de 1990 a maioria dos novos casos surgiu no continente africano. Em 2013 foram registados 783 casos a nível mundial, contabilizando-se 126 mortes. Os três países mais endémicos são Madagascar, a República Democrática do Congo e o Peru.

A Peste Negra, causada pela bactéria Yersinia pestis, transmitida ao ser humano através das pulgas (Xenopsylla cheopis) dos ratos-pretos (Rattus rattus) ou outros roedores, é uma peste bubónica que se complica com as perturbações pulmonares e deve o seu nome ao facto de se manifestar por vómitos-negros e inchaços arroxeados (os “bubões”, tumores cutâneos) que apareciam nas virilhas e noutras partes do corpo.

Em Decameron, Bocaccio descreve os sintomas:

"Na nossa terra, no início da epidemia, quer se tratasse de homens ou de mulheres, produziam-se certos inchaços nas virilhas ou nas axilas: alguns desses inchaços tornavam-se do tamanho de uma maçã vulgar, outros como um ovo, outros um pouco maiores ou mais pequenos. Chamava-se-lhes usualmente bubões. [...] Mais tarde, os sintomas mudaram e transformaram-se em manchas negras ou lívidas que apareciam nos braços, nas coxas ou em qualquer outra parte do corpo, de umas vezes grandes e separadas, de outras muito juntas e pequenas. Tal como o bubão que fora de início, e continuava a sê-lo, o indício de uma morte certa, também as manchas o eram para aqueles em que apareciam".
In Boccaccio, Decameron
(edição portuguesa traduzida por Urbano Tavares Rodrigues para o Círculo de Leitores, s. d.)


Acreditava-se também que a doença tinha origem nos “miasmas”, o conjunto de odores fétidos provenientes de matéria orgânica em putrefação nos solos e lençóis freáticos contaminados. Por isso, na Idade Média, os chamados “médicos de peste” usavam um traje de proteção que consistia numa capa de tecido pesado, que era encerado, e numa máscara com aberturas nos olhos e um nariz em forma de cone, como um bico de ave, cheio de substâncias aromáticas e de palha. Estas máscaras foram concebidas para os proteger do ar fétido, que, de acordo com a teoria miasmática da doença, foi considerado como a causa da infecção [atualmente a teoria miasmática é considerada obsoleta, sendo consensual e aceite a teoria microbiana]. Alguns dos materiais perfumados eram folhas de hortelã, erva-cidreira, cânfora, cravo, âmbar, láudano, mirra ou pétalas de rosa. A palha fornecia um filtro para o "mau ar".


Estas roupas terão sido inventadas por Charles de Lorme, em 1619, e usadas pela primeira vez em Paris, espalhando-se mais tarde por toda a Europa. A maioria dos médicos da peste também usava um chapéu de aba, que servia para identificar a sua condição de médico, e um bastão ponteiro de madeira para examinar o paciente sem a necessidade de contacto.
Alguns especialistas defendem que a epidemia chegou ao fim graças ao ciclo natural da doença. Devido à quantidade de mortos, tornou-se mais difícil propagar a enfermidade. Além disso, muitas cidades interditaram a entrada de estrangeiros, colocaram os seus doentes em quarentena, de modo que a evitar a transmissão para outras pessoas, e obrigaram os tripulantes dos navios que chegavam aos portos a permanecer igualmente de quarentena.

Portugal
A Peste Negra chegou a Portugal no outono de 1348, durante o reinado de D. Afonso IV. Num país já fragilizado por uma série de maus anos agrícolas, terá provocado a morte de cerca de um terço a metade da população, segundo as estimativas mais credíveis, levando a nação a uma grande desorganização económica e social. O rei reagiu prontamente, tendo promulgado legislação a reprimir a mendicidade e a ociosidade, assim como Leis do Trabalho que, além de obrigarem as pessoas a trabalhar nos ofícios que desempenhavam antes da Peste e pelos anteriores salários, vão ainda normalizar práticas sociais, impondo, por exemplo, limites no tipo de vestuário ou no número de pratos que podem ser consumidos diariamente pelas diversas ordens sociais.

“Sabei que fui informado que nessa vila há homens e mulheres que, antes da peste, ganhavam dinheiro pelo seu trabalho (...) e serviam esse concelho como era necessário. E que agora, por terem recebido alguns bens por morte de algumas pessoas, consideram-se tão importantes que não querem trabalhar nos seus ofícios e serviços que antes faziam. (...)
Mando-vos, por isso, (...) que obrigueis que cada um trabalhe no ofício e nos serviços que antes fazia (...) e tabeleis os salários como vos parecer conveniente.”
(Lei de D.Afonso IV, in Livro das Leis e Posturas,
apud Ana Lídia Pinto et al.Temas de História 10, Porto: Porto Editora, 1993 - adaptado)


A Peste Negra voltou a Portugal várias vezes até ao fim do século XVII. Nenhuma foi tão devastadora como a do século XIV, mas a Grande Peste de Lisboa em 1569 terá matado 600 pessoas por dia, ao todo 60 000 habitantes da cidade terão sucumbido. Em 1899, a peste foi importada para o Porto vinda do Oriente (provavelmente de Macau, onde grassou desde 1895 até ao fim do século). A epidemia do Porto foi estudada por Ricardo Jorge, que instituiu as medidas de Saúde Pública necessárias, e que a conseguiram limitar.

Ricardo Jorge

Ricardo de Almeida Jorge nasceu no Porto, em 1858, e faleceu em Lisboa, em 1939. Foi médico, investigador, higienista, professor de Medicina e introduziu em Portugal modernas técnicas e conceitos de saúde pública.
Foi Ricardo Jorge que chegou à prova clínica e epidemiológica da peste bubónica que em 1899 assolou a cidade do Porto, tendo sido esta prova depois confirmada bacteriologicamente. As operações profiláticas que orientou no sentido de eliminar a peste, como a evacuação de casas e o isolamento e desinfeção de domicílios, entre outras, desencadearam a fúria popular que, incentivada por grupos políticos, obrigaram Ricardo Jorge a abandonar a cidade. Em Outubro de 1899 foi transferido para Lisboa, sendo nomeado Inspetor-Geral de Saúde e, depois, professor de Higiene da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa.

Em 1903, foi incumbido de organizar e dirigir o Instituto Central de Higiene, que passaria a ter o seu nome a partir de 1929 e hoje é o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge.

Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge


Fevereiro de 2019

EXPOSIÇÃO:


1936, O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS





Ricardo Reis nasceu no Porto, no dia 19 de setembro de 1887, estudou num colégio de jesuítas, formou-se em medicina e, por ser monárquico, expatriou-se espontaneamente em 1919, indo viver para o Brasil. Na sua biografia não consta a sua morte, no entanto, no seu livro O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago situou-a em 1936.

1936 é o ano em que o ambiente internacional se começou a degradar. A Grande Depressão e consequentes dificuldades económicas e sociais favorecem a irradiação do fascismo na Europa, ao mesmo tempo que se assiste à formação de governos de coligação de partidos de esquerda, como é o caso das Frentes Populares em Espanha e em França. A eclosão da Guerra Civil Espanhola será um prenúncio da II Guerra Mundial.

Os alunos do 12º D partiram destas primeiras ideias e pesquisaram sobre o que aconteceu no ano de 1936: da estreia do filme "Tempos Modernos", de Charlie Chaplin, à criação do Voskswagen na Alemanha de Hitler; da publicação do livro "E tudo o vento levou", da escritora norte-americana Margaret Mitchell, à viagem inaugural do zepelim Hiddenburg (que a 7 de setembro sobrevoou Lisboa); do assassinato de Federico García Lorca à remilitarização da Renânia pela Alemanha, muitos foram os acontecimentos que marcaram 1936, além dos que aparecem referidos na obra de Saramago: a fundação da Mocidade e da Legião Portuguesa, a conquista da Etiópia por Mussolini ou os Jogos Olímpicos de Berlim.

Da pesquisa efetuada pelos alunos nasceu uma Exposição de cartazes que pode ser visitada durante o mês de fevereiro na Biblioteca do ECB.


"Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo"
Ricardo Reis



“… as notícias que estavam a vir de Espanha, sobre as eleições […], a direita tinha ganho em dezassete províncias, mas, contados os votos todos, viu-se que a esquerda elegera mais deputados que o centro e a direita juntos…” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, pp. 148-149)


“… duzentos e cinquenta mil soldados alemães estão prontos a ocupar a Renânia e […] uma força militar alemã penetrou há poucos dias em território checoslovaco…” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, p. 142)

“… por estes dias denunciou a Alemanha o pacto de Lucarno e ocupou a zona renana” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, p. 198)


“Agora o que vamos ter de mais certo é virem por aí abaixo outros tantos franceses, que já a esquerda de lá ganhou as eleições, e o socialista Blum declarou-se pronto a constituir governo de Frente Popular…” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, p. 291)


“O mundo, como destas amostras se pode concluir, não promete soberbas felicidades, agora foi Alcalá Zamora destituído da presidência da República e logo começou a correr o boato de que haverá um movimento popular em Espanha, se tal coisa lá fizerem, tristes dias estão guardados para muita gente.” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, p. 253)


“[…] Ricardo Reis deve ter sido o último habitante de Lisboa a saber que se dera um golpe militar em Espanha. […] O exército espanhol, guardião das virtudes da raça e da tradição, ia falar com a voz das suas armas, expulsaria os vendilhões do templo, restauraria o altar da pátria, restituiria à Espanha a imorredoira grandeza que alguns degenerados filhos haviam feito decair. […] O levantamento começou no Marrocos espanhol e […] é seu principal chefe o general Franco.” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, pp. 363-364)



“Porventura com vistas a essa aprendizagem se decretou a criação da Mocidade Portuguesa que, lá para Outubro, quando iniciar a sério os seus trabalhos, abrangerá, logo de entrada, cerca de duzentos mil rapazes, flor ou nata da nossa juventude, da qual […] há-de sair a elite que nos governará depois …” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, p. 355)


“… considere-se o exemplo dos italianos, que […] lá vão ganhando a sua guerra, ainda há poucos dias bombardearam a cidade de Harrar, voaram até lá os aviões e reduziram tudo a cinzas…” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, p. 253)

“As tropas de Badoglio preparam-se para retomar o avanço sobre Addis-Abeba…” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, p. 278)

“E terminou a guerra da Etiópia. Disse-o Mussolini do alto da varanda do palácio, Anuncio ao povo italiano e ao mundo que acabou a guerra, e a esta voz poderosa as multidões de Roma, de Nápoles, da Itália inteira, milhões de bocas, todos gritaram o nome do Duce […]” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, p. 292)





“Como amostra do que virá a ser a nossa juventude patriótica, irão a Berlim, já fardados, os representantes da MP, […] e assistirão aos Jogos Olímpicos, onde, escusado será dizê-lo, causarão impressão magnífica, estes belos e aprumados moços, orgulho da lusitana raça…“ (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, p. 355)


“Viu ontem o balão, Qual balão, O zepelim, passou mesmo por cima do hotel, o gigantesco, adasmatórico dirigível, Graf Zeppelin, de nome e título do seu construtor, conde Zeppelin, general e aeronauta alemão, ei-lo a sobrevoar a cidade de Lisboa […] tão grande, […] e aquela cruz que leva atrás, Chamam-lhe gamada, ou suástica, […] o dirigível é alemão, e a suástica é hoje o emblema da Alemanha…” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, p. 278)

“[…] enquanto os ingleses protestam contra a passagem do dirigível Hindemburgo sobre fábricas e pontos estratégicos britânicos, o que se vai dizendo é que tudo parece indicar que a incorporação da Cidade Livre de Danzig no território alemão não virá longe.” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, p. 361)




“… lidos foram e tornados a ler estes dessangrados jornais de Lisboa, desde as notícias da primeira página, Eduardo VIII será o novo rei de Inglaterra…” (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, p. 119)



Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo

Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.

Coroem-no pâmpanos. ou heras. ou rosas volúveis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta a flor como a ele
De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto às horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.

E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.

19-6-1914

Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1946








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