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sexta-feira, 18 de maio de 2018

Dez Mil Guitarras, de Catherine Clément: uma sugestão de leitura no Dia Internacional dos Museus

Porto Editora, 2010

No Dia Internacional dos Museus, apresentamos como sugestão de leitura o romance Dez Mil Guitarras, de Catherine Clément. Entre as suas personagens, encontramos Rodolfo II, Imperador da Áustria, cujas "Câmaras de Arte e Prodígios" (ou "Salas das Maravilhas") podem ser consideradas precursoras do moderno conceito de Museu. 

Catherine Clément nasceu em França, em 1939, e é autora de mais de trinta livros. Iniciou a sua carreira académica na área da Filosofia, formando-se na Ecole Normale Supérieure, onde teve como professores Claude Lévi-Strauss ou Jacques Lacan, com quem trabalhou em estudos de antropologia e psicanálise. Mais tarde começou a dedicar-se à ficção, particularmente no género do romance histórico.
As suas obras estão hoje traduzidas em mais de 24 línguas.



Em Dez Mil Guitarras, Catherine Clément transporta-nos para a Europa de finais do século XVI, apresentando-nos uma galeria de retratos de uma Europa em mutação: o peso dos Habsburgo, a violência das guerras religiosas, a loucura do Imperador da Áustria, a rebelião da jovem rainha Cristina da Suécia e a sua paixão por Descartes.
Entretanto, em Marrocos, dez mil guitarras jazem ao abandono no campo de batalha de Alcácer-Quibir. D. Sebastião desapareceu. Morto ou vivo? Há quem espere por ele...
Ao contar-nos essa espera, Catherine Clément compõe um romance como uma ópera, pleno de fantasia e de verdades pouco conhecidas, dando voz a personagens memoráveis, como o famoso rinoceronte que atravessou toda a Índia e que, depois de ter navegado de Goa para Lisboa, se encontra enjaulado para deleite de soberanos: um jovem rei português, um velho rei de Espanha, um imperador alquimista, uma rainha bárbara.

“Tive como proprietários dois reis, um imperador e uma rainha que semeava tempestades. Nenhum deles foi francamente mau; místico, devoto, iluminado, rebelde, procuravam uma grande ideia, que eu vi nascer. As belezas da ideia e os seus crimes, as suas loucuras, as guerras intermináveis, os prazeres desenfreados e a sua obstinação em perseguir não sei o quê, a ramagem das árvores, as caçadas, as divisões, era a obstinação da Europa em sobreviver.”

Quem assim fala é o rinoceronte (o bada, na terminologia da época), um ser extraordinário que é a alma migrada de um brâmane hindu. E é através dos seus relatos que vamos percorrendo as cortes mais afamadas da Europa entre 1577, vésperas da batalha de Alcácer-Quibir, e 1689, data da morte da Rainha Cristina da Suécia.
Adquirido pelo rei D. Sebastião de Portugal, herdado por Filipe II de Espanha, e depois (já morto e com o corno transformado em cálice) pelo imperador Rodolfo II do Sacro-Império Romano-Germânico, levado para a corte sueca em 1648, este rinoceronte encontra-se hoje no Kunsthistorisches Museum de Viena.
São muito diferentes as personalidades dos sucessivos proprietários do bada:
  • D. Sebastião de Portugal, um rei que nasce Desejado e morre Encoberto, eivado ainda do ideal de cruzada e que, em nome de Deus e do Império, morrerá (ou não...) em Marrocos;
  • Rodolfo de Habsburgo, imperador da Áustria, verdadeiro espírito da época, prenúncio da modernidade, para quem as descobertas científicas são mais importantes do que as divisões religiosas ou políticas; as suas Câmaras de Arte e Prodígios (ou Salas das Maravilhas) reuniam tudo o que na época era considerado exótico ou maravilhoso, desde animais a objetos; conhecido como “O Alquimista”, na sua corte encontramos homens como os astrónomos Tycho Brahé e Johannes Kepler, ou o pintor Giuseppe Arcimboldo, que retratará Rodolfo II no célebre Vertumnus;
  • e ainda a rainha Cristina da Suécia, em cujo reinado assistimos ao desenrolar da Guerra dos Tinta Anos, que começa por uma questão religiosa e se transforma numa guerra por territórios.

No final, o bada dirá

“Na verdade, os reis são pouca coisa.”

Dia Internacional dos Museus


No dia 18 de maio celebra-se o Dia Internacional dos Museus, criado em 1977 pelo Conselho Internacional de Museus – ICOM –, com o objetivo de promover, junto da sociedade, uma reflexão sobre o papel dos Museus no seu desenvolvimento. Para 2018, o ICOM propõe o tema - Museus hiperconectados: novas abordagens, novos públicos.

Um museu é, na definição do ICOM (2001), "uma instituição permanente, sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público e que adquire, conserva, investiga, difunde e expõe os testemunhos materiais do homem, para educação e deleite da sociedade".

A palavra “museu” tem origem etimológica no grego antigo mouseion. Apesar de a arqueologia revelar que desde os seus primórdios a Humanidade adquiriu o hábito do colecionismo (por exemplo, no Paleolítico os homens primitivos já reuniam vários tipos de artefactos, como o provam achados em sepulturas), é somente a partir da Antiguidade que surgem espaços com um sentido mais próximo do conceito moderno de museu quando, além de colecionar objetos a que atribui valor, seja afetivo, cultural ou simplesmente material, o homem começa a organizar museus enquanto sítios para exposição e preservação de objetos com uma finalidade cultural e educativa.
Na Grécia Antiga o mouseion era um templo das musas, divindades que presidiam à poesia, música, oratória, história, tragédia, comédia, dança e astronomia. Esses templos, bem como os de outras divindades, recebiam muitas oferendas em objetos preciosos ou exóticos, que podiam ser exibidos ao público mediante o pagamento de uma pequena taxa. Os romanos expunham coleções públicas nos fóruns, jardins públicos, templos, teatros e termas. No oriente, onde o culto à personalidade de reis e heróis era forte, reuniam-se objetos históricos com a função de preservação da memória e dos feitos gloriosos desses personagens.
Durante a Idade Média, também resultado das vicissitudes políticas e económicas deste período, a noção de museu quase desapareceu, embora o colecionismo continuasse vivo: por um lado, os acervos de preciosidades eram considerados património de reserva que podia ser convertido em dinheiro em caso de necessidade, como para financiamento de guerras; por outro, muitas coleções se formaram com objetos ligados ao culto cristão, acumulando-se em catedrais e mosteiros quantidades de relíquias de santos, manuscritos iluminados e alfaias litúrgicas em metais e pedras preciosos.
No Renascimento, com a recuperação dos ideais clássicos e a consolidação do humanismo, ressurgiu o colecionismo privado de grandes banqueiros e comerciantes, integrantes da burguesia em ascensão, que financiavam uma grande produção de arte profana e ornamental e se dedicavam à procura de relíquias da Antiguidade. Reis, nobres e burgueses abastados de toda a Europa competiam, como mecenas, na propaganda das suas coleções que se tornaram célebres pela sua riqueza, como a dos Medici, em Florença.


Palácio Medici, Florença


Palácio Medici

É também durante o Renascimento que aparecem os “gabinetes de curiosidades”, ou “salas das maravilhas”, como eram designados os lugares onde, durante a época das grandes explorações e descobrimentos dos séculos XVI e XVII, se colecionava uma multiplicidade de objetos raros ou estranhos dos três ramos da biologia considerados na época, animal, vegetal e mineral, além das realizações humanas. Formavam assim coleções muito heterogéneas e assistemáticas de peças das mais variadas naturezas e procedências, incluindo fósseis, esqueletos, animais empalhados, minerais, curiosidades, aberrações da natureza, miniaturas, objetos exóticos de países distantes, obras de arte, máquinas e inventos, e todo o tipo de objetos raros e maravilhosos. Por isto são considerados os precursores dos atuais museus de arte.


A primeira ilustração de um gabinete de curiosidades,
publicada por Ferrante Imperato em Dell'Historia Naturale, Nápoles, 1599


Um exemplo de um rei-colecionador é Rodolfo II (Viena, 18 de julho de 1552 – Praga, 20 de janeiro de 1612), Imperador Romano-Germânico desde 1575 até à sua morte, além de Arquiduque da Áustria e Rei da Hungria, Croácia e Boémia. Era filho do imperador Maximiliano II e da arquiduquesa Maria da Áustria e foi um dos mais excêntricos monarcas europeus de todos os tempos. Colecionava anões e possuía um regimento de gigantes no seu exército. Rodeava-se de astrólogos, orientava-se pelas ciências ocultas e era fascinado por jogos, códigos e música. Defensor da alquimia, Rodolfo II financiou a impressão de literatura alquimista. Além disso, o seu gosto pelo exótico fez deste Imperador um dos principais protetores e mecenas de Giuseppe Arcimboldo, pintor italiano (1526-1593), considerado por alguns críticos de arte como um dos precursores ou inspiradores do surrealismo, umas das vanguardas europeias do século XX. Uma das principais obras do artista é justamente o retrato de Rodolfo II como o deus romano Vertumnus, pintado provavelmente entre 1590 e 1591 e feito com vários tipos de frutas, legumes, cereais e outros vegetais.


Vertumnus
Giuseppe Arcimboldo (1590–1591)

Outro exemplo de um colecionador particular é o médico e antiquário dinamarquês Olaus Wormius, ou Ole Worm (Aarhus, 13 de maio de 1588 – Copenhaga, 31 de agosto de 1654).
Ole Worm foi de alguma forma um "estudante perpétuo": depois de estudar na escola em Aarhus, continuou a sua educação na Universidade de Marburg; recebeu o título de Doutor em Medicina pela Universidade de Basileia, em 1611, e o título de Mestre em Artes pela Universidade de Copenhaga, em 1617. O resto de sua carreira académica foi feito em Copenhaga, onde aprendeu latim, grego, medicina e física. Foi o médico pessoal do rei Cristiano V da Dinamarca.
Na medicina, as principais contribuições de Worm aconteceram na área da embriologia. Os ossos de Worm (pequenos ossos que cobrem os espaços no crânio) receberam o seu nome em honra do seu contributo para esta área.
Worm tornou-se também conhecido como colecionador de literatura primitiva em idiomas escandinavos. Escreveu vários tratados sobre runas e colecionou textos escritos em alfabetos rúnicos.
Como naturalista, Worm reuniu uma grande coleção no seu "Gabinete de curiosidades", que incluía desde artefatos nativos do Novo Mundo a animais dissecados ou fósseis. Em 1655, já depois da sua morte, é publicado o catálogo do seu Museum Wormianum.
A principal utilidade das coleções de história natural de Worm era a pedagogia.


Frontispício do livro Musei Wormiani Historia
que mostra o quarto das maravilhas de Worm
No entanto, quer os Gabinetes de Curiosidades, quer as galerias privadas de reis, nobres ou burgueses estavam ainda essencialmente dentro dos círculos privados, inacessíveis à população em geral.
Movidas por interesses científicos foram fundadas inúmeras sociedades e instituições, como os jardins botânicos de Pisa (1543) e o de Pádua (1545), a Real Sociedade de Londres (1660) e a Academia de Ciências de Paris (1666), que reuniam as suas próprias coleções.
É durante o século XVII que o museu se consolidou mais ou menos como atualmente o conhecemos.
Em 1671, surgiu em Basileia o primeiro museu universitário e, em 1683, é criado em Inglaterra, pela Universidade de Oxford, aquele que é considerado o primeiro museu moderno com  o objetivo declarado de educar o público, o Museu Ashmolean. O seu acervo era eclético e assemelhava-se aos antigos gabinetes de curiosidades, procedente de várias partes do mundo, reunido pela família Tradescant e previamente exibido na sua casa de Londres.


Museu Ashmolean, Oxford

No século XVIII, o espírito enciclopédico dos iluministas fortaleceu a associação do conhecimento com a razão, a ordem e a moral, favorecendo a formação de acervos sistemáticos e a atuação de instituições culturais com objetivos educativos e públicos.
Importantes museus fundados no século XVIII foram o Museu Britânico, aberto em Londres em 1759, e o Museu do Louvre, em Paris, em 1793, por iniciativa dos respetivos governos.


Museu Britânico, Londres



Museu do Louvre, Paris

O exemplo europeu, por força do colonialismo, frutificou também em territórios do Oriente e na América. Em Jacarta, a Sociedade de Artes e Ciência de Batavia iniciou uma coleção em 1778, que evoluiu para se tornar o Museu Nacional da Indonésia.


Museu Nacional da Indonésia, Jacarta

Na Índia, em 1784 é fundado o primeiro museu, o Museu Indiano, a partir das coleções reunidas pela Sociedade Asiática de Bengal.


Museu Indiano (ou Museu da Índia), Chowringhee - Kolkata, West Bengal

Nos Estados Unidos, a Charleston Library Society da Carolina do Sul anunciou em 1773 a sua intenção de formar uma coleção de produtos naturais para fomentar e promover a agricultura e a medicina da província.


Charleston Library Society, Charleston, Carolina do Sul

Entretanto, os Gabinetes de Curiosidades vão desaparecendo durante os séculos XVIII e XIX, sendo substituídos por instituições oficiais e coleções privadas. Os objetos considerados mais interessantes foram transferidos para os museus de artes e de história natural que começaram a ser fundados.
No século XIX, o museu continuou a sua transformação, expandindo os seus horizontes para incluir novas categorias e temas, e progressivamente abandonando o simples colecionismo para oferecer a exibição e catalogação rigorosamente sistemáticas, possibilitando ao público percorrer roteiros que apresentavam panoramas de toda a história e cultura da humanidade, reservando secções para apresentação das mais recentes conquistas da ciência e tecnologia.
O museu também desempenhou um papel no sentimento nacionalista romântico, contribuindo para a consciencialização popular e a construção de identidades nacionais, reunindo objetos ligados ao património cultural das nações, também como forma de legitimar os seu direito à independência. Pelos mesmos motivos aparece uma profusão de museus regionais e locais, voltados para os interesses de pequenas áreas geográficas.
Até meados do século XX, as práticas colecionistas continuaram a caracterizar-se acima de tudo por uma postura passiva diante da sociedade, seguindo critérios aquisitivos e administrativos vagos e que alguns críticos consideram arbitrários. A partir dos anos 70, assistiu-se a um aprofundamento científico da definição e das potencialidades dos museus enquanto recurso de atuação ativa, interdisciplinar e educativa, sendo lícito considerar esta reorientação como uma verdadeira revolução na conceção do museu público e como a fundação da museologia moderna.

No século XXI, os museus, enquanto espaço e enquanto conceito, têm de acompanhar e refletir as transformações sociodemográficas e tecnológicas. O tema para as comemorações do Dia Internacional dos Museus em 2018, Museus hiperconectados: novas abordagens, novos públicos, reflete isso mesmo.
No sítio da Direção Geral do Património Cultural, Ministério da Cultura de Portugal, podemos ler

“Os museus, enquanto parte integrante das suas comunidades, não podem alhear-se da rede global de conexões que caracteriza a sociedade contemporânea, quer no que respeita ao modo de interpretar e apresentar os seus acervos, quer no que se refere aos meios utilizados para cativar novos públicos. A digitalização das coleções, a presença de elementos multimédia nas exposições ou o hashtag são apenas alguns dos recursos proporcionados pelas novas tecnologias.
No entanto, a hiperconectividade dos museus deve ser também entendida no sentido de estes alcançarem uma aproximação mais abrangente aos vários setores da sociedade, cada vez mais sujeita a transformações, nomeadamente com o aparecimento de novas minorias, grupos étnicos ou instituições locais.” 



terça-feira, 8 de maio de 2018

Exposição de trabalhos de alunos do 8º ano na Biblioteca do ECB


A partir da obra A Salvação de Wang Fô e Outros Contos Orientais, de Marguerite Yourcenar, os alunos do 8º ano criaram pequenos storyboards e ilustrações utilizando lápis de cor, marcadores e caneta preta sobre papel. A montagem, utilizando a técnica do recorte, evoca as lanternas chinesas do reino dos Han.
O velho pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling erravam pelo reino dos Han. O pintor era conhecido por ter o poder de dar vida às suas pinturas por um derradeiro toque de cor. Tinham-se conhecido numa taberna e Ling, de tal forma se modificara pelos ensinamentos de Eang-Fô, que sacrificara a sua fortuna para seguir o mestre.

Um dia são procurados por soldados, algemados e levados ao palácio imperial. Dragão Celeste, o imperador, crescera só e encerrado numa ala do palácio coberta de quadros de Wang-fô. Dragão Celeste acusa Wang-Fô de lhe ter mentido sobre o mundo com as suas pinturas e quer queimar-lhe os olhos e cortar-lhe as mãos…




A Salvação de Wang Fô e Outros Contos Orientais, da escritora francesa Marguerite Yourcenar, traz-nos um conjunto de textos “invulgares, oníricos, com elementos que vão do sobrenatural ao mito e à lenda e que vão beber a inspiração ao Oriente para daí abrirem as suas asas e conseguirem o que apenas a grande literatura consegue: abarcar o mundo, tocar a universalidade. Um pintor assombrado pelas imagens que cria, um herói traído, uma mãe que cuida do filho recém-nascido após a sua própria morte, uma deusa infeliz…Com uma linguagem sublime capaz de desvelar os mais secretos significados, Yourcenar aponta diretamente ao âmago da natureza humana e a noções tão fundamentais como a vida e a morte.” (in www.wook.pt)
Marguerite Yourcenar (pseudónimo de Marguerite Cleenewerck de Crayencour; Yourcenar é um anagrama de Crayencour) nasceu em Bruxelas, a 8 de junho de 1903, filha de pai francês e mãe belga. Foi a primeira mulher a ser eleita para a Academia Francesa de Letras, em 1980.


Com o pai, começou a ler Marco Aurélio, a estudar grego, latim e inglês na mansão dos Crayencour, no Monte Negro, Norte de França, e a viajar, desde cedo, pela Europa.
Em 1923, com 20 anos, numa viagem a Itália, descobre a Villa Adriana. É quando o imperador romano lhe surge pela primeira vez como personagem.
Em 1929, publicou o seu primeiro romance, Alexis ou o Tratado do Vão Combate.
Após a morte do pai, em 1929, Marguerite Yourcenar levou uma vida boémia entre Paris, Lausanne, Atenas, as ilhas gregas, Constantinopla e Bruxelas.
Entre 32 e 39, Yourcenar passa longas temporadas na Grécia, com amigos. Traduz a poesia de Kavafis. A prosa poética de Fogos, publicado em 1936, resultará dessa experiência. O livro, composto por textos com inspirações mitológicas ou religiosas, trata de diversas formas o tema do desespero amoroso e dos sofrimentos sentimentais, tema que seria retomado mais tarde em Golpe de Misericórdia (1939), romance curto sobre um triângulo amoroso durante a guerra russo-polaca de 1920.
Em 1939, publicou A Salvação de Wang Fô e Outros Contos Orientais, com histórias que fazem referência às suas viagens.
Ainda em 1939, e com a Europa conturbada pela proximidade da Segunda Guerra Mundial, mudou-se para os Estados Unidos, onde passou o resto da sua vida, obtendo a cidadania norte-americana em 1947 e ensinando literatura francesa até 1949.
Foi sobretudo após a publicação de Memórias de Adriano, em 1951, que Marguerite Yourcenar se tornou conhecida internacionalmente. Este romance está escrito sob a forma de uma longa carta dirigida por Adriano, velho imperador romano, já minado pela doença, ao jovem Marco Aurélio, que deve suceder-lhe no trono de Roma (século II d. C.). Uma carta em que lhe promete contar toda a verdade, sem as reservas próprias da história oficial. Pouco a pouco, através desta serena confissão, suscitada pelo pressentimento de que a morte se aproxima, ficamos a conhecer os episódios decisivos da vida deste homem notável, que soube pacificar o império, tornar a sociedade romana um pouco mais justa, melhorar a sorte das mulheres e dos escravos.
O sucesso de Marguerite Yourcenar seria confirmado com A Obra ao Negro, em 1968, uma biografia de um herói do século XVI, Zénon, atraído pelo hermetismo e a ciência, romance com que ganharia o Prémio Femina, com voto unânime do júri.
Além de romances, publicou ainda poemas, ensaios (como O Tempo Esse Grande Escultor ou A benefício de inventário) e um livro de memórias, O Labirinto do Mundo, uma trilogia autobiográfica composta por Memórias Piedosas, Arquivos do Norte e O Quê? A Eternidade.
Em 1977, ganhou o Grande Prémio de Literatura da Academia Francesa, pelo conjunto da sua obra.
A sua atração pela Grécia e pelo misticismo oriental encontra-se patente em trabalhos como Mishima ou a visão do vazio (1981) e Como a água que corre (1982).
Marguerite Yourcenar morreu em Mount Desert Island, Estados Unidos da América, a 17 de dezembro de 1987.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Palestra "Química com livros"


No dia 18 de abril, o Professor Doutor Sérgio Rodrigues conversou com os alunos de Ciências e Tecnologias sobre os contributos da Química ao longo da História, chamando a atenção para a interpretação científica de pequenas passagens em livros.
A Química tem contribuído para a resolução de muitos problemas, desde a alimentação da população, com a descoberta dos adubos e dos agro-químicos e o consequente aumento da produção agrícola, passando pela pesquisa de energias alternativas, até à utilização de novos materiais para vestir, calçar e proteger, muitos deles com base no processo de reciclagem. Lembrar também a evolução da vacinação, da medicação e da higienização, enfim a luta pela sobrevivência e o aumento da esperança média de vida. E porque não observá-la atentamente, na pintura, na arquitetura, na escrita e na sinalética vertical de trânsito?
No entanto, hoje sabemos que as medidas de crescimento nem sempre foram as mais acertadas e que por vezes o conhecimento científico foi e é usado, por exemplo, como alavanca da construção das armas químicas. De acordo com o Professor Doutor Sérgio Rodrigues, se todas as ciências têm os seus pontos positivos e negativos, devemos tentar minimizar os menos bons.


Este Professor do Departamento de Química da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra deixou-nos ainda uma lista de sugestões de leitura acompanhada de temáticas relacionadas com esta ciência. Porque, como refere, “a Química está em todo o lado!”
  • Moby Dick, de Herman Melville, e Mau tempo no canal, de Vitorino Nemésio: a química e a caça à baleia e a evolução técnica.
  • Arrowsmith de Sinclair Lewis; Deuses e demónios da medicina e Domingo à tarde, de Fernando Namora; O crime do padre Amaro e Os Maias, de Eça de Queiroz; O terceiro homem, de Graham Greene: a evolução técnica e química da medicina.
  • Amadeo, de Mário Cláudio, e O perfumista, de Joaquim Mestre: medicamento atual para a gripe e memória da gripe pneumónica.
  • O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós; O som e a fúria, de William Faulkner; e a Balada da praia dos cães, de José Cardoso Pires: aspetos indiretos da evolução química e social da contraceção.
  • Escritores como Mário de Sá Carneiro, Ângelo de Lima, Sylvia Plath, Florbela Espanca ou David Foster Wallace para o estudo da memória e reflexos de comportamentos depressivos ou psicopatológicos e tratamento de doenças mentais e doenças degenerativas.
  • Cinzas do Passado, de Martin Suter, uma história que envolve a doença de Alzheimer.
  • A primavera silenciosa, de Rachel Carson, e o nascimento do movimento ecologista.
  • O admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e a crítica do progresso técnico distópico.
  • Lírica de Camões (“Amor é fogo que arde sem se ver…”) e Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco: sobre a química do amor.


terça-feira, 1 de maio de 2018

Autor do mês de maio - Manuel Alegre


© Foto Luiz Carvalho


Escreverei para ti o poema mais triste
Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades
quando me tocas há um país que não existe
e um anjo poisa-me nos ombros Senhora das Tempestades.
In Senhora das Tempestades, 1998
O escritor e político português Manuel Alegre de Melo Duarte nasceu em Águeda, no dia 12 de maio de 1936.
A família de Manuel Alegre inscreve-se na tradição política liberal portuguesa: o seu trisavô paterno, Francisco Soares de Freitas, combateu ao lado de D. Pedro na guerra civil contra D. Miguel, foi fundador dos Caminhos de Ferro ao Sul do Tejo e primeiro visconde do Barreiro; o avô materno, Manuel Ribeiro Alegre, republicano e carbonário, foi deputado constituinte em 1911 e governador civil de Santarém.
Depois de percorrer vários estabelecimentos de ensino entre o ensino primário e o secundário (os primeiros estudos feitos em Águeda; o curso dos liceus em Lisboa, no Passos Manuel, no Cartaxo, no Colégio Almeida Garrett, em São João da Madeira, no Colégio Castilho, e finalmente no Porto, onde concluiu os estudos secundários no Liceu Central Alexandre Herculano), Manuel Alegre entrou em 1956 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Durante o seu percurso académico, foi-se dividindo entre a intervenção política (fez parte dos grupos de oposição de estudantes ao salazarismo; em 1957, tornou-se militante do Partido Comunista Português; em 1958, foi membro da Comissão da Academia que apoiou a candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República) e as atividades culturais (participou na fundação do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra e foi ator do Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra, deslocando-se para atuar em Bruxelas, Cabo Verde e Bristol).
Dirigiu o jornal A Briosa, foi redator da revista Vértice e colaborador da Via Latina, periódicos onde começou a publicar os primeiros poemas, em 1960.
Em 1961, iniciou o serviço militar na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, de onde saiu, pouco depois, para a ilha de São Miguel.
Em 1962, foi mobilizado para Angola, onde foi preso pela PIDE, em 1963, por dirigir uma tentativa pioneira de revolta militar. Regressado a Portugal, foi-lhe fixada residência em Coimbra, acabando depois por passar à clandestinidade e, em 1964, exilou-se em Paris, cidade onde foi eleito para um cargo na Direção da Frente Patriótica de Libertação Nacional, presidida por Humberto Delgado. Como representante desta organização, discursou nas Nações Unidas sobre a sua experiência em Angola e contactou com os líderes dos movimentos africanos de libertação, como Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, Samora Machel, Amílcar Cabral ou Mário Pinto de Andrade.
Ainda em 1964, partiu para um exílio de 10 anos, em Argel. Através da emissora de rádio A Voz da Liberdade, difundia conteúdos de apoio aos movimentos de libertação das antigas províncias ultramarinas e contra o regime salazarista.

Entretanto, os seus dois primeiros livros, Praça da Canção (1965) e O Canto e as Armas (1967), são apreendidos pela censura, mas cópias manuscritas ou datilografadas circulam clandestinamente de mão em mão. Poemas seus, cantados, entre outros, por Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e Luís Cília, tornaram-se emblemas da luta clandestina.


Um exemplo,
Trova do Vento que Passa
(Balada de Manuel Alegre, com música de António Portugal e cantada por Adriano Correia de Oliveira)

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.
Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio - é tudo o que tem
quem vive na servidão.
Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.
E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.
Vi meu poema na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
Vi navios a partir
(Portugal à flor das águas)
vi minha trova florir
(verdes folhas verdes mágoas).
Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.
E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.
Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
Manuel Alegre, in Praça da Canção (1965)

Em 1968, afasta-se do Partido Comunista Português para aderir à Ação Socialista Portuguesa, embrião do Partido Socialista, fundado em abril de 1973, na cidade alemã de Bad Münstereifel.
Após a revolução de abril de 1974, regressou a Portugal, entrando nos quadros da Radiodifusão Portuguesa, como diretor dos Serviços Recreativos e Culturais.
Ainda em 1974, aderiu ao Partido Socialista; em 1975 foi eleito deputado à Assembleia Constituinte, sendo o autor da proposta apresentada pelo PS para o texto do preâmbulo da Constituição Portuguesa de 1976, que foi adotado.
Deputado à Assembleia da República a partir de 1976, integrou o I Governo Constitucional (de Mário Soares), primeiro como Secretário de Estado da Comunicação Social, depois como Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro para os Assuntos Políticos.
No Parlamento, foi presidente da Comissão Parlamentar de Negócios Estrangeiros, vice-presidente da Delegação Parlamentar Portuguesa ao Conselho da Europa, vice-presidente do Grupo Parlamentar do PS e vice-presidente da Assembleia da República.
Em 2006, foi candidato independente às eleições presidenciais, ficando em segundo lugar nas votações, tendo obtido mais votos que Mário Soares, então candidato oficial do PS. Após essas eleições, fundou o Movimento de Intervenção e Cidadania (MIC).
Em 2009, cessou o seu último mandato como deputado à Assembleia da República, após 34 anos no Parlamento, sempre eleito por Coimbra.
Em 2011, voltou a candidatar-se às eleições presidenciais, conseguindo o apoio do PS, do BE, do PCTP, bem como dos dirigentes do MIC.

Além da atividade política, é sobretudo a sua carreira literária que este mês queremos homenagear e dar a conhecer, quer como poeta, quer como ficcionista.
Reconhecido além-fronteiras, é o único autor português incluído na antologia Cent poèmes sur l'exil, editada pela Liga dos Direitos do Homem, em França (1993). Em Abril de 2010, a Universidade de Pádua, em Itália, inaugurou a Cátedra Manuel Alegre, destinada ao estudo da Língua, Literatura e Cultura Portuguesas.
Foram muitos os prémios e distinções que recebeu ao longo dos anos. Pelo conjunto da sua obra recebeu, entre outros, o Grande Prémio de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores (1998). Em 1999, recebeuo Prémio Pessoa. Em 2016 a Sociedade Portuguesa de Autores atribuiu-lhe o Prémio de Consagração de Carreira. Em 2017, recebeu (“finalmente”) o Prémio Camões (e, como o próprio Manuel Alegre comentou na altura, “o estranho foi não o ter recebido antes!”).
Obra publicada
(*) Disponível na Biblioteca do ECB

Poesia

1965 – Praça da Canção
1967 - O Canto e as Armas (*)
1971 - Um Barco para Ítaca
1976 - Coisa Amar (Coisas do Mar)
1979 - Nova do Achamento
1981 – Atlântico (*)
1983 - Babilónia
1984 - Chegar Aqui
1984 - Aicha Conticha
1991 - A Rosa e o Compasso
1992 - Com que Pena — Vinte Poemas para Camões
1993 - Sonetos do Obscuro Quê
1995 - Coimbra Nunca Vista (*)
1996 - As Naus de Verde Pinho
1996 - Alentejo e Ninguém
1997 - Che
1998 - Pico
1998 - Senhora das Tempestades (*)
1999 - E alegre se fez triste
2001 - Livro do Português Errante (*)
2008 - Nambuangongo, Meu Amor
2008 - Sete Partidas
2017 - Auto de António







Ficção

1989 - Jornada de África (*)
1989 - O Homem do País Azul (*)
1995 – Alma (*)
1998 - A Terceira Rosa (*)
1999 - Uma Carga de Cavalaria
2002 - Cão Como Nós (*)
2003 – Rafael (*)











Literatura Infantil

2007 - Barbi-Ruivo, O meu primeiro Camões, ilustrações de André Letria, Publicações Dom Quixote (*)
2009 - O Príncipe do Rio, ilustrações de Danuta Wojciechowska, Publicações Dom Quixote
2015 - As Naus de Verde Pinho: Viagem de Bartolomeu Dias contada à minha filha Joana. Prémio de Literatura Infantil António Botto




Outros

1997 - Contra a Corrente (discursos e textos políticos) (*)
2002 - Arte de Marear (ensaios) (*)
2006 - O Futebol e a Vida, Do Euro 2004 ao Mundial 2006 (crónicas)
2016 - Uma outra memória - A escrita, Portugal e os camaradas dos sonhos





Principais condecorações e medalhas

Portugal – Grã-Cruz da Ordem da Liberdade de Portugal (maio de 1989)
Marrocos – Comendador da Ordem de Ouissam Alaoui de Marrocos (fevereiro de 1992)
Chile – Grande-Oficial da Ordem de Bernardo O'Higgins do Chile (abril de 1995)
Itália – Grande-Oficial da Ordem "Stella Della Solidarietá" Italiana de Itália, atribuída pelo Presidente de Itália (junho de 2008)
União Europeia – Medalha de Mérito do Conselho da Europa, de que é Membro-Honorário.
Portugal – Medalha de Honra da Sociedade Portuguesa de Autores (maio de 2008)
Itália – Medalha da Cidade de Veneza, por ocasião do Convénio Internacional "La Porta d’Oriente -Viaggi e Poesia" (novembro de 1999)
Portugal – Medalha de Ouro da Cidade de Águeda
Itália – Medalha da Cidade de Pádua, tendo sido agraciado com o título de Cidadão-Honorário (abril de 2010)
Portugal – Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada (maio de 2016)
Itália – Doutoramento Honoris Causa em Línguas e Literaturas Modernas Europeias e Americanas, pela Universidade de Pádua (novembro de 2017)

Prémios

Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1998)
Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários (1998)
Prémio de Literatura Infantil António Botto (1998)
Prémio Pessoa (1999)
Prémio Fernando Namora (1999)
Prémio D. Dinis (2007)
Grande Prémio Vida Literária (2016)
Grande Prémio de Literatura dst (2016)
Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores (2016)
Prémio Guerra Junqueiro instituído pelo FFIL - Freixo Festival Internacional de Literatura (2017)
Prémio Camões (2017) (o maior prémio literário da língua portuguesa, instituído pelos governos do Brasil e de Portugal)


Um poema para a eternidade...

Uma flor de verde pinho
Eu podia chamar-te pátria minha
dar-te o mais lindo nome português
podia dar-te um nome de rainha
que este amor é de Pedro por Inês.
Mas não há forma não há verso não há leito
para este fogo amor para este rio.
Como dizer um coração fora do peito?
Meu amor transbordou. E eu sem navio.
Gostar de ti é um poema que não digo
que não há taça amor para este vinho
não há guitarra nem cantar de amigo
não há flor não há flor de verde pinho.
Não há barco nem trigo não há trevo
não há palavras para dizer esta canção.
Gostar de ti é um poema que não escrevo.
Que há um rio sem leito. E eu sem coração.
(canção portuguesa no Festival Eurovisão da Canção 1976, interpretada em português pelo fadista Carlos do Carmo, com letra de Manuel Alegre, música de José Niza e orquestração do maestro Thilo Krasman)