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quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Recordar Amadeo de Souza-Cardoso no centenário da sua morte



“Nada é absoluto em pintura. Aquilo que era uma verdade para os pintores de ontem, é uma mentira para os de hoje.”
(em entrevista a O Dia, 4 de dezembro de 1916)

Nascido em Manhufe, paróquia de Mancelos, concelho de Amarante, em 14 de novembro de 1887, Amadeo de Souza-Cardoso foi um dos maiores pintores portugueses, a quem se deve a grande rotura no panorama da história das artes plásticas no nosso país. Entre 1906 e 1914 viveu em Paris, cidade onde começou a sua carreira de pintor e foi amigo de grandes nomes das vanguardas europeias. Com a sua irreverência, trouxe a modernidade para Portugal quando, em 1914, regressou de Paris para fugir ao drama da I Guerra Mundial. Morreu prematuramente, aos 30 anos, no dia 25 de outubro de 1918, vítima da epidemia de gripe espanhola (ou pneumónica) que deflagrara nesse ano.

A vida de Amadeo, tão curta, mas tão intensa, acompanha as grandes transformações que ocorrem entre finais do século XIX e inícios do século XX: dos ecos da Revolução Industrial às invenções tecnológicas como a lâmpada elétrica incandescente, o automóvel ou o telefone; dos novos conhecimentos científicos nas áreas das ciências naturais ou da medicina à teoria da relatividade restrita de Einstein ou à Psicanálise de Freud, é todo um mundo de possibilidades em aberto que se apresentam e ao qual as artes plásticas não ficam indiferentes.
Contra o ensino académico, naturalista e realista, defendendo a libertação da sujeição ao real e a independência do artista face ao gosto do público, as vanguardas modernistas vão-se afirmando, mesmo que nem sempre compreendidas e aceites. O início do século XX será o tempo do Fauvismo, do Expressionismo, do Cubismo, do Abstracionismo, do Futurismo, do Dadaísmo e do Surrealismo.

Em Paris, para onde vai viver em 1906 para frequentar o curso de arquitetura (depois de em Lisboa ter frequentado um curso de desenho na Real Academia de Belas-Artes), Amadeo de Souza-Cardoso encontra-se com diversos artistas portugueses que aí se tinham instalado, como os pintores Guilherme Santa-Rita (conhecido como Santa-Rita Pintor), Manuel Bentes, Emerico Nunes, Eduardo Viana ou o escultor Diogo Macedo, desistindo do curso de arquitetura para tentar a carreira de caricaturista ou artista plástico. É também em Paris que conhece o casal Robert e Sonia Delaunay, Constantin Brancusi e Amedeo Modigliani, entre outros artistas de vanguarda.
Em 1911, inaugura no seu ateliê de Paris uma exposição conjunta com Modigliani, recebendo as visitas de Picasso, Apollinaire e André Derain, e participa pela primeira vez numa exposição de âmbito internacional, o XXVII Salão dos Independentes de Munique.



Os Galgos, 1911



Les cavaliers, 1912

1913 é um dos anos mais profícuos da sua carreira e é também o ano da sua internacionalização. Convidado a apresentar a sua obra no Armory Show (International Exhibition of Modern Art, que mostraria pela primeira vez, nas cidades de Nova Iorque, Chicago e Boston, a moderna arte europeia nos Estados Unidos da América, com obras de artistas ligados ao impressionismo, expressionismo, fauvismo e cubismo), aí participa entre fevereiro e maio com 8 quadros, sendo, entre os 300 artistas representados, um dos 10 que mais obras venderam. Ainda no mesmo ano, entre setembro e novembro, participa com 3 obras no Primeiro Salão Alemão de Outono.



Autorretrato, 1913




Cozinha de Manhufe, 1913



Dame, menina dos cravos, 1913




Procissão Corpus Christi, 1913



Barcos, 1913

Em 1914, entre junho e julho, expõe em Londres, no Salão da Allied Artist’s Association. Um mês depois, a Primeira Guerra Mundial apanha-o em Portugal, onde tinha vindo para se casar com Lucie Pecetto. Impossibilitados de regressar a Paris, instalam-se na Casa do Ribeiro, em Manhufe.



Lucie Pecetto




Sobreposição de imagens de Amadeo e Lucie. Manhufe (Amarante, Portugal). 1915.

Em 1915, o pintor russo Kasimir Malevitch “inventa” o Suprematismo, expondo as suas obras na Primeira Exposição Futurista «Carro Elétrico V», em Sampetersburgo, das quais a que mais impressiona o meio artístico é Quadrado Negro sobre Fundo Branco.


Kasimir Malevitch, Quadrado Negro sobre Fundo Branco

É com este pintor que Amadeo de Souza-Cardoso se começa a identificar: ambos têm em comum o objetivo de criar uma arte que seja universal. No entanto, nem Malevitch esquece as suas raízes culturais russas, nem Amadeo se afasta das suas próprias, mais atlânticas. A Máscara do Olho Verde, de 1915, insere-se num conjunto de máscaras primitivas que Amadeo vai buscar às suas referências lusitanas (as antigas máscaras de lata ou madeira da tradição transmontana, nomeadamente os «caretos»), recriando de forma pessoal a sua ideia de máscara, na qual podemos encontrar influências do cubismo ou do expressionismo, mas sem ser uma coisa nem outra.


A Máscara do Olho Verde, 1915

A I Guerra Mundial trouxe também para Portugal o casal Sonia e Robert Delaunay, instalados em Vila do Conde no final do verão de 1915, acompanhados de Eduardo Viana, igualmente regressado do Paris. Os Delaunay, Amadeo e Viana vão formar a cooperativa Corporation Nouvelle (a que se juntará Almada Negreiros).


 Robert Delaunay, Mulher Portuguesa, 1916



Sonia Delaunay, Mercado no Minho, 1915


Através de Almada, Amadeo entra em contacto com o grupo dos “Futuristas” lisboetas, reunidos inicialmente em torno da revista Orpheu, na qual estava previsto colaborar no número 3 (que nunca chegou a ser publicado), envolvendo-se mais tarde noutros projetos editoriais de Almada Negreiros, como a revista Portugal Futurista, publicando trabalhos ou encarregando-se da edição gráfica do folheto satírico, estilo futurista K4. O quadrado azul, inspirado numa obra de Eduardo Viana.



Capa do folheto




Eduardo Viana, K4 Quadrado Azul, 1916
(fonte de inspiração de Almada para o folheto satírico com o mesmo nome)

Será Almada Negreiros que, em dezembro de 1916, publica um manifesto em defesa da pintura de Amadeo, considerando-o «a primeira descoberta de Portugal na Europa no século XX».



Canção popular A Russa e o Fígaro, 1916




Coty, 1917




Sem título, 1917

Em setembro de 1918, Amadeo de Souza-Cardoso vai para a casa da família em Espinho, numa tentativa de fugir à epidemia de gripe espanhola (pneumónica) que grassava na Europa e tinha já feito algumas mortes em Amarante.
No dia 25 de outubro de 1918, poucos dias depois de uma irmã, Amadeo morre em Espinho, vítima da pneumónica que tanto temia (no total, estima-se que cerca de 20 milhões de pessoas tenham sucumbido em toda a Europa).
Da obra de Amadeo de Souza-Cardoso pode dizer-se que:
  • Pintou reinterpretando e reinventando a realidade;
  • Geometrizou as formas, usou cores vibrantes, decompôs as imagens à maneira cubista, pintou círculos de cor, máscaras de influência etnográfica;
  • Usou colagens, areia, pasta de óleo, inseriu letras;
  • Estilhaçou e decompôs a imagem em múltiplas partes;
  • Morreu demasiado cedo…
Em dezembro de 1916, numa entrevista ao jornal O Dia declarara «Eu não sigo escola nenhuma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola.»

As mortes prematuras de Mário de Sá-Carneiro, em 1916, e de Amadeo de Souza-Cardoso e Santa-Rita Pintor em 1918 puseram fim a um primeiro modernismo em Portugal. Almada Negreiros dirá que com eles desapareceu o “fogo sagrado”. Será o mesmo Almada que, juntamente com Eduardo Viana, procurará continuar a herança.

No Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulkbenkian, em Lisboa, encontra-se a maior parte da obra de Amadeo de Souza-Cardoso exposta em Portugal .

Fontes bibliográficas:
Amadeo de Souza-Cardoso. Fotobiografia. Catálogo Raisonné. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2007
Belém, Margarida Cunha e Ramalho, Margarida Magalhães - Fotobiografia de Amadeo de Souza-Cardoso. Lisboa: Temas e Debates. 2009






quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Dia do Pão por Deus




História do Dia de Pão por Deus

Segundo a tradição, no dia 1 de novembro repartia-se pão cozido pelos pobres que batiam às portas a pedir “Pão por Deus”. A origem deste peditório está associada ao antigo costume de oferecer pão, bolos, vinho e outros alimentos aos defuntos. Quem pedia à porta era encarado como a alma do morto a errar pelo mundo e a pedir. O Pão de Deus é assim uma oferta às almas que partiram.
Em Portugal, era costume, nos últimos dias do mês de Outubro e até ao dia 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos, as crianças saírem à rua e, sozinhas ou em pequenos grupos, andarem de porta em porta de saco na mão a pedir o Pão por Deus (ou o bolinho ou "santorinho"), ao mesmo tempo que recitavam versos e recebendo como ofertas pão, broas, bolos, romãs e frutos secos, nozes, tremoços, amêndoas ou castanhas que colocavam dentro dos seus sacos de pano, de retalhos ou de borlas. Em algumas povoações da zona centro e Estremadura chama-se ainda a este dia o ‘Dia dos Bolinhos’ ou ‘Dia do Bolinho’. Os bolinhos típicos são especialmente confecionados para este dia, sendo à base de farinha e erva-doce com mel (noutros locais leva batata doce e abóbora) e frutos secos como passas e nozes.


Nos últimos anos, têm surgido ameaças à continuidade desta tradição, em particular nas vilas e cidades, com a progressiva substituição do “Pão por Deus” pelo “Halloween”, festa importada da cultura norte-americana, mas com semelhanças com a tradição nacional, como por exemplo o peditório de guloseimas que as crianças realizam pelas casas da sua comunidade ou as expressões que utilizam. No “Pão por Deus”, se não recebem nada, as crianças podem responder com versos como os seguintes: “Esta casa cheira a alho! Aqui mora um espantalho!” ou “Esta casa cheira a unto! Aqui mora algum defunto!”. Pelo contrário, se recebem guloseimas, respondem com versos como este: “Esta casa cheira a broa! Aqui mora gente boa!”.





"A progressiva implantação do Halloween em Portugal constitui um exemplo de ameaça ou risco à continuidade do “Pão-por-Deus” como manifestação do Património Imaterial português. Em primeiro lugar, substitui os versos tradicionais, manifestações da tradição oral da comunidade, por expressões orais originárias do Inglês (“Doçura ou travessura!” / “Trick or treat!”). Em segundo lugar, introduz neste peditório cerimonial infantil o uso de máscaras e fatos muito semelhantes às usadas no Carnaval, mas que tradicionalmente eram totalmente ausentes do “Pão-por-Deus”. Finalmente, e como bem expressam as alterações do nome da tradição, da forma e conteúdo da tradição oral, e também o tipo de máscaras que passaram a ser utilizadas pelas crianças, a introdução do “Halloween” eliminou por completo as conotações religiosas muito presentes na antiga tradição do “Pão-por-Deus”."

In: http://www.matrizpci.dgpc.pt/MatrizPCI.Web/Download/Kit/KIT_Ficha%2002_Tradi%C3%A7%C3%B5es%20Festivas.pdf


Alguns versos tradicionais:

Bolinhos e bolinhós
Para mim e para vós,
Para dar aos finados
Que estão mortos e enterrados
À bela, bela cruz

Truz, Truz!
A senhora que está lá dentro
Sentada num banquinho
Faz favor de s'alevantar
Para vir dar um tostãozinho.

Se recebem doces:
Esta casa cheira a broa,
Aqui mora gente boa.
Esta casa cheira a vinho,
Aqui mora um santinho.
Se não recebem doces:
Esta casa cheira a alho
Aqui mora um espantalho.
Esta casa cheira a unto,
Aqui mora algum defunto.


Autor do mês de novembro - Albert Camus



Albert Camus foi um escritor, filósofo, romancista, dramaturgo, jornalista e ensaísta francês, a quem foi atribuído o Prémio Nobel da Literatura em 1957.
Nasceu na Argélia, a 7 de novembro de 1913, numa localidade chamada Mondovi (hoje denominada Dréan), durante a ocupação francesa, numa família pied-noir, termo usado para referir os cidadãos franceses, ou de ascendência europeia, que viveram por várias gerações no Norte da África francês, nomeadamente na Argélia francesa, no Protetorado Francês de Marrocos ou no Protetorado Francês da Tunísia, e que "regressaram" a França quando estes territórios se tornaram independentes, entre 1956 e 1962. Camus morreu em Villeblevin, França, a 4 de janeiro de 1960, vítima de um acidente de automóvel.

A morte do pai em 1914, na batalha do Marne, durante a Primeira Guerra Mundial, e a mudança da família para Argel, para casa da avó materna, no bairro operário de Belcourt (onde, anos mais tarde, durante a guerra da independência da Argélia, houve um massacre de muçulmanos) influenciaram a sua vida e a sua obra. No entanto, apesar de uma infância extremamente pobre, ela é também marcada por uma felicidade ligada à natureza, que Camus narra um pouco por toda a sua obra.
Devido às dificuldades económicas da família, Albert Camus quase abandonou os estudos ainda na escola primária para trabalhar com o tio numa oficina de tanoeiro. No entanto, o apoio do professor da escola primária, Louis Germain, que viu naquele pequeno pied-noir um futuro promissor, e de um professor da escola secundária, Jean Grenier, foi fundamental para que Camus seguisse os estudos e se licenciasse em Filosofia, apresentando ainda uma dissertação de mestrado sobre neoplatonismo e uma tese de doutoramento sobre Santo Agostinho. Será a Germain que Camus dedicará a obra Discursos da Suécia (que inclui o discurso que pronunciou ao receber o Nobel), enquanto O Homem Revoltado (1951) é dedicado a Grenier.

Os críticos consideram que Camus incorporou uma das mais elevadas consciências morais do século XX. O humanismo que perpassa nos seus escritos foi fundamentado na experiência de alguns dos piores momentos da história: Camus foi sobretudo uma testemunha do seu tempo. Intransigente, recusou qualquer filiação ideológica. Lutou energicamente contra todas as ideologias e abstrações que considerava deturpadoras a natureza humana.

O seu trabalho inclui peças de teatro, romances, notícias, filmes, poemas e ensaios, onde desenvolveu um humanismo baseado na consciência do absurdo da condição humana e na revolta como uma resposta a esse absurdo. Para Camus, essa revolta leva à ação e fornece sentido ao mundo e à existência. Daqui "Nasce então a estranha alegria que nos ajuda a viver e a morrer".
Em 1938, Camus ajudou a fundar o jornal Alger Républicain e colaborou nos jornais CombatParis-Soir.
A carreira de Camus como jornalista foi ousada: trabalhou com a Resistência Francesa durante a II Guerra Mundial, tomou posições incisivas em relação à Guerra de Independência da Argélia e ao Partido Comunista Francês e envolveu-se em diversas causas sociais, protestando veementemente contra as desigualdades que atingiam os muçulmanos no Norte de África, defendendo os exilados espanhóis antifascistas e as vítimas do estalinismo. Foi ainda defensor da objeção de consciência.

Camus morreu em janeiro de 1960, vítima de um acidente de automóvel, durante uma viagem a Paris com o seu editor Michel Gallimard. Cinquenta anos depois da sua morte, revelações do escritor e tradutor checo Jan Zabrana, incluídas no seu diário publicado postumamente, sugerem a possibilidade de Camus ter sido assassinado, por ordem do Ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS, Dmitri Shepilov, em retaliação à oposição aberta que o escritor fazia a Moscovo - particularmente num artigo publicado na revista Franc-Tireur, de março de 1957, em que atacava pessoalmente o ministro, responsabilizando-o pelo que chamou "massacre", durante a repressão soviética à Revolução Húngara de 1956. Citando Walt Whitman, Camus afirmara "sem liberdade, nada pode existir", granjeando assim a inimizade de estalinistas e de simpatizantes do comunismo.
Quando morreu, Camus tinha já cerca de 30 obras publicadas, entre romances, contos, ensaios, peças de teatro, crónicas e correspondência. Em 1994, a sua filha publica Le Premier Homme (O primeiro homem), romance inacabado cujo manuscrito foi descoberto nos destroços do acidente de automóvel que vitimou Albert Camus.
Considerado o mais autobiográfico de todos os seus romances, em O primeiro homem Camus volta ao começo de tudo neste romance: a chegada dos pais a Argel, a infância e a adolescência marcadas pela pobreza, a dolorosa ausência do pai que nunca conheceu e a sua condição de “francês colonial” nascido na Argélia Francesa. É a história de Jacques Cormery, um rapaz que vive uma vida sem igual, e convoca o panorama, os sons e as texturas de uma infância circunscrita pela pobreza e pela morte de um pai, mas redimida pela beleza austera de Argel, pelo amor que Jacques tem à mãe e à avó, e por um professor que transformará a sua visão do mundo. O título, O primeiro homem, sugere a busca de uma identidade ligada à busca do pai desaparecido.


O Estrangeiro


Considerado o mais famoso romance de Albert Camus, romance estranho, desconcertante sob uma aparência de singeleza estilística, em O Estrangeiro joga-se o destino de um homem perante o absurdo e questiona-se o sentido da existência. Esta obra, publicada em 1942, faz parte do "ciclo do absurdo" de Camus, trilogia que inclui o ensaio Le mythe de Sisyphe (O mito de Sísifo) e a peça de teatro Calígula que descrevem o aspeto fundamental da filosofia de Camus: o absurdo.

“Hoje a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: «Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sinceros sentimentos.» Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.”

O romance conta a história de um narrador personagem, Meursault, um homem que comete um assassinato e é julgado por esse ato. A ação desenrola-se na Argélia num tempo anterior à independência. A narrativa começa quando o protagonista, Mersault, recebe um telegrama a comunicar-lhe a morte da mãe, que seria enterrada no dia seguinte. Ele viaja até ao asilo onde a mãe morava e comparece ao funeral, sem, no entanto, expressar quaisquer emoções, não sendo praticamente afetado pelo acontecimento. O romance prossegue, documentando os acontecimentos seguintes na vida de Meursault, como a relação de amizade com um dos seus vizinhos, Raymond Sintès, a quem ajuda a livrar-se de uma de suas amantes árabes. Mais tarde, os dois confrontam-se com o irmão da mulher ("o árabe") numa praia e Raymond sai ferido de uma luta com facas. Depois disso, Meursault volta à praia e, num delírio induzido pelo calor e pela luz forte do sol (“o mesmo sol do dia em que minha mãe fora a enterrar”), dispara o revólver sobre o árabe causando a sua morte, dando mais quatro tiros sobre o corpo já morto.

“Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excecional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes sobre um corpo inerte, onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas à porta da desgraça.”

A segunda parte do romance narra todo o julgamento de Meursault, durante o qual a acusação se concentra no facto de Meursault não ter conseguido ou não ter tido vontade de chorar no funeral da mãe. O homicídio do árabe é aparentemente menos importante do que o facto de Meursault ser ou não capaz de sentir remorsos; o argumento é que, se ele é incapaz de sentir remorsos, deve ser considerado um misantropo perigoso e consequentemente executado para prevenir que repita os seus crimes, transformando-o também num exemplo.
A história chega ao fim com Meursault reconhecendo a indiferença do universo em relação à humanidade. Nas linhas finais ecoa essa ideia que ele agora toma como verdadeira:

“Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e estrelas, eu abria-me, pela primeira vez, à terna indiferença do Mundo. Por o sentir tão parecido comigo, tão fraternal, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução, e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio.”


A Peste




"Na manhã do dia 16 de abril, o doutor Bernard Rieux saiu do seu consultório e tropeça num rato morto, no meio do patamar. Nesse momento, afastou o bicho sem lhe prestar atenção e desceu a escada."

Este é o primeiro sinal de uma epidemia de peste que em breve toma conta de toda a cidade de Orão, na Argélia. Sujeita a quarentena, a cidade torna-se um território irrespirável e os seus habitantes são conduzidos até estados de sofrimento, de loucura, mas também de compaixão de proporções desmedidas…

Publicado originalmente em 1947, o romance A Peste é uma história sobre o horror, a sobrevivência e a capacidade de resiliência do ser humano, uma parábola de ressonância intemporal, um romance magistralmente construído. A Peste foi interpretado por vários críticos como uma alegoria ao nazismo e, por extensão, a todos os regimes totalitários. O próprio autor admitia que o conteúdo evidente era a resistência a Hitler. Não bastasse ter sido escrito durante a Segunda Guerra Mundial e publicado em 1947, o livro contém alusões à Ocupação ou a ditaduras, como o decreto do estado de sítio na região onde se passa a história ou o facto de um dos personagens, o jornalista Raymond Rambert, ser proibido de sair da cidade, um sinal da limitação da liberdade de imprensa.

“[…] o doutor Rieux decidiu então redigir esta narrativa […], para não ser daqueles que se calam, para depor a favor destes pestíferos, para deixar ao menos uma recordação da injustiça e da violência que lhes tinham sido feitas e para dizer simplesmente o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar do que a desprezar. […] Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada. E sabia que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”



Outros livros de Albert Camus que podemos encontrar
na Biblioteca do ECB: