Oceano Pacífico, 20 de novembro de 1820. O
navio baleeiro Essex, que regressava
da ilha de Nantucket, na costa leste dos Estados Unidos, um dos maiores centros
baleeiros, é atacado por um cachalote macho, com 26 metros de comprimento,
cerca de 8 toneladas e a cabeça cheia de cicatrizes, naquele que foi o primeiro
e único ataque registado de uma baleia contra uma embarcação.
De um golpe, o animal atingiu a parte
frontal do navio. Em seguida, passou por baixo do casco, arrancou a quilha e
emergiu do outro lado. Afastou-se um pouco e voltou ao ataque. Em grande
velocidade, atingiu o barco logo abaixo da âncora. O Essex estava condenado a ser enterrado no fundo do mar. A baleia
desvencilhou-se dos destroços e afastou-se a nadar para nunca mais ser vista.
Este ataque, que deixaria os 20
tripulantes à deriva durante três meses, serviria de inspiração para um dos
maiores clássicos da literatura mundial, Moby Dick, de Herman Melville.
Herman Melville nasceu em Nova Iorque, no
dia 1 de agosto de 1819, e morreu na mesma cidade, a 28 de setembro de 1891. A
morte do pai, em 1832, obrigou-o a trabalhar para ajudar a sustentar a família
(então com oito filhos). Assim, trabalhou como bancário, professor e
agricultor. Em 1839, embarcou como ajudante no navio mercante St. Lawrence, com destino a Liverpool e,
em 1841, no baleeiro Acushnet, a
bordo do qual percorreu quase todo o Pacífico. Quando a embarcação chegou às
ilhas Marquesas, na Polinésia francesa, Melville decidiu abandoná-la para viver
junto dos nativos por algumas semanas. As suas aventuras como
"visitante-cativo" da tribo de canibais Typee foram registadas no
livro Typee, publicado em 1846. O seu segundo livro, Omoo, de
1847, narra as suas aventuras a bordo do baleeiro australiano Lucy Ann quando, na sequência de um motim
organizado pelos tripulantes insatisfeitos pela falta de pagamento, foi preso
numa cadeia no Tahiti, da qual conseguiu fugir pouco depois.
Os dois primeiros livros renderam-lhe
muito sucesso entre o público
e os críticos e um certo conforto financeiro. No entanto, a sua
popularidade foi decaindo ao longo dos anos. Quando faleceu, em 1891, com 10
romances e um livro de contos publicados, estava quase completamente esquecido,
sem conhecer o sucesso que alcançaria no século XX a sua mais importante obra,
o romance Moby Dick. O livro, dividido em três volumes, foi publicado em
Londres e em Nova Iorque, em 1851 com o título de Moby-Dick, A baleia
e não obteve sucesso entre os
críticos, tendo sido considerado o principal motivo para o
declínio da carreira do autor.
Há quem diga que nem sequer tenham sido
vendidos 500 exemplares do livro no Reino Unido e que o escritor ganhou menos
de 600 dólares com as vendas do romance durante a sua vida. Atualmente, um
exemplar da primeira edição vale milhares de euros.
Moby Dick, um romance sobre um cachalote branco que
foi perseguido e ferido várias vezes por baleeiros e que conseguiu defender-se
e destruir os seus caçadores, centra-se nas aventuras narradas pelo marinheiro
Ishmael, um professor rural oriundo de uma família tradicional que decide
“velejar um pouco e ver a parte aquosa do mundo” para fugir de sua melancolia.
Ismael trabalhou como marinheiro em navios mercantes, mas decide viajar num
baleeiro e conhecer as baleias. A viagem a bordo do baleeiro Pequod, dirigido pelo Capitão Ahab, terá
sido parcialmente inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu
teimosamente uma baleia e que, ao tentar destruí-la, se afundou. Outra fonte de
inspiração para Herman Melville terá sido o cachalote albino Mocha Dick,
supostamente morto na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, quando
se defendia dos navios que o perturbavam com premeditada ferocidade.
O livro foi revolucionário para a época,
com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, as suas
reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos,
como baleias, métodos de caça, detalhes sobre as embarcações, arpões, e
armazenamento de produtos extraídos das baleias.
Se Herman Melville não conheceu a fama que
a sua obra alcançaria com o decorrer do tempo, poucos serão os livros e
escritores que se poderão orgulhar de terem servido de inspiração para a
criação do nome de uma nova espécie animal. Quando em 2015 um grupo de
cientistas descobriu uma nova espécie de cachalotes, chamou-lhe Albicetus,
albus (branco) e cetus (baleia), devido às semelhanças com a baleia descrita
por Herman Melville em Moby Dick: branca,
com uma magnitude fora do comum, um tom notável e um maxilar inferior deformado.
Moby Dick começa com a frase: “Chamai-me Ismael.”
Segue-se a narrativa em primeira pessoa deste marinheiro que, com “uma camisa
ou duas” na sua bolsa de viagem, se dirige à Ilha Nantucket, “o lugar onde
encalhou a primeira baleia americana morta”. Chegado a Nantucket, entra num
baleeiro com decoração bizarra (“um navio canibal, ornado com os ossos dos
inimigos que caçara”) chamado Pequod,
nome de uma tribo extinta de índios do Massachusetts. Um velho marinheiro
esfarrapado, Elias, tenta alertá-lo sobre o capitão do navio e demovê-lo de
embarcar, num prenúncio sinistro do que viria a acontecer. A viagem começa no
dia do Natal. O capitão Ahab, que de início não é visto no convés, só sai da
sua cabine em alto-mar para explicar à tripulação o verdadeiro objetivo da
viagem: caçar e abater Moby Dick, a baleia branca (do tipo cachalote, “o maior
animal do globo; a mais formidável, para enfrentar, de todas as baleias”), que
lhe arrancou uma perna. Sob o seu rígido comando, a missão comercial do Pequod é alterada tornando-se uma missão
de vingança pessoal. Para Ahab, o monstro que destruiu o seu corpo não é uma
criatura, mas sim o símbolo de algo desconhecido. Sem medo das catástrofes
naturais, dos maus presságios ou mesmo da morte, Ahab impele o seu navio em direção
ao perigo.
Se a caça à baleia é hoje condenada e
proibida, o registo mais antigo desta prática está gravado no sul da Coreia, em
pinturas rupestres, que datam de há cerca de 8000 anos. Da baleia,
aproveitavam-se a carne, o marfim, os ossos (para a produção de farinhas), o
óleo (para iluminação e como lubrificante), a gordura e a cartilagem
(utilizados para fins farmacêuticos e como suplementos alimentares).
No início do século XIX, a extração do
óleo de baleia era uma importante atividade económica. A caça à baleia
tornou-se cada vez mais sofisticada com a introdução dos navios baleeiros e de
armas de caça mais eficazes. A partir de meados do século XIX, ficou claro que
a caça à baleia estava a processar-se a um ritmo que não era acompanhado pelo
crescimento natural das populações das espécies caçadas.
A comunidade internacional entendeu por
isso que era urgente regulamentar a atividade. A primeira tentativa surgiu em
1931, mas o processo foi interrompido devido à Segunda Guerra Mundial.
Em dezembro de 1946, foi assinada em
Washington a Convenção Internacional para a Regulação da Atividade Baleeira, de
que resultou a fundação da Comissão Baleeira Internacional (CBI), entidade que
ficou responsável pela regulamentação da atividade, com o objetivo de garantir
uma adequada conservação das populações de baleias, permitindo assim um
desenvolvimento ordenado da indústria baleeira.
O documento foi assinado por 42 estados,
mas só em 1986 a CBI decidiu proibir, sem termo definido e a todos os Estados
participantes do acordo, a caça à baleia para fins comerciais. No entanto, os
barcos nunca deixaram de fazer-se ao mar, sobretudo os japoneses, noruegueses e
islandeses. São estes os três países que caçavam e continuam a caçar em grande
escala. Segundo a WDC (Conservação para as baleias e golfinhos), todos os anos
o Japão, Noruega e Islândia matam aproximadamente 1500 baleias.
O Japão decidiu abandonar a Comissão Baleeira
Internacional e retomar a caça da baleia nas suas águas territoriais a partir
de julho de 2019. Organizações ecologistas, como a Greenpeace, consideram
"lamentável e perigosa" esta decisão do governo japonês e apelam aos
países mais conservadores, como a Austrália, os Estados Unidos ou os membros da
União Europeia, que denunciem ao Tribunal de Justiça Internacional estas
práticas e, sobretudo, que vigiem as atividades pesqueiras japonesas.
Releituras de Moby Dick
Em 1989,
o escritor chileno Luis Sepúlveda, recentemente falecido vítima de COVID-19 em 16 de abril
de 2020, retoma a história de Moby Dick em Mundo
do Fim do Mundo. Um adolescente, entusiasmado pela leitura do romance de Melville,
aproveita as férias de verão para embarcar num baleeiro e conhecer, nos confins
austrais do continente americano, as terras onde o mundo termina. Muitos anos
depois, já adulto, jornalista e membro ativo dos movimentos ecologistas, o
acaso fá-lo regressar a essas paragens distantes por uma razão completamente
distinta mas talvez igualmente romântica: a fauna marítima que habita as águas
gélidas e impolutas desse mundo do fim do mundo está a ser destruída pela ação
criminosa dos navios piratas.
Luis
Sepúlveda, que participou no movimento ecologista e, enquanto correspondente da
Greenpeace, atravessou os mares do mundo, entre 1983 e 1988, retoma este tema
na obra História de uma baleia branca,
de 2019.
De
uma concha apanhada por uma criança numa praia chilena, ao Sul do Mundo, uma
voz se eleva, cheia de lembranças e sabedoria. É a voz da baleia branca, o
mítico animal que durante décadas tem guardado as águas que separam a costa de
uma ilha sagrada para os povos nativos daquele lugar, o Povo do Mar. O
cachalote da cor da lua, a maior das criaturas do oceano, conheceu a imensa
solidão e a imensa profundidade do abismo e dedicou a sua vida a cumprir
fielmente a tarefa misteriosa que lhe foi confiada por um cachalote-ancião,
resultado de um pacto há muito tempo estabelecido entre baleias e marinheiros. Para
cumpri-lo, a grande baleia branca teve de proteger aquele mar de outros homens,
estranhos, que com os seus navios ali chegavam para tirar tudo sem respeitar
nada.
Foram
sempre eles, os baleeiros, a contar a história da temida baleia branca, mas
agora é chegado o momento de ouvirmos a sua voz na velha língua do mar.
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