(© Maria José Cabral)
Do catálogo da Biblioteca do Externato Cooperativo da Benedita, apresentamos as seguintes sugestões de leitura da obra do escritor moçambicano Mia Couto:
Raiz de orvalho e outros poemas
A
edição portuguesa de Raiz de Orvalho e
Outros Poemas reúne poemas com datas diversas, com um conjunto de novos
poemas (todos da década de 80) e seleção de outros que faziam parte da edição
moçambicana, publicada em Maputo, em 1983, com o título Raiz de Orvalho.
Segundo
o próprio autor, alguns não resistiram ao tempo, noutros ele próprio não se
reconhece já. Mas todos estes versos fazem parte do seu percurso. E daqui ele
partiu para desvendar outros terrenos. Mas (e ainda segundo o próprio Mia), se
sem esta escrita nunca teria experimentado outras dimensões da palavra, nós
nunca poderíamos ter partilhado da beleza comovente das imagens, da música doce
e profunda dos vocábulos, da palavra certa que só ele encontrou e que tantas
vezes quisemos ser nós a dizer, das cores profundas e intensas das emoções.
Esta é uma poesia única, de alegria, de desespero e de amor, de solidariedade e
humildade, de qualidade rara, porque sentida e escrita e lida à flor da pele. Uma
experiência enriquecedora para quem a partilha. Um privilégio para quem nela se
fundir.
Vozes anoitecidas
Publicado
pela primeira vez em 1986, Vozes
anoitecidas projetou Mia Couto para o mundo. Conhecido até então por seu
trabalho como jornalista e poeta, o autor - hoje tido como um dos mais
influentes escritores da língua portuguesa - lançou aqui as bases daquela que
viria a ser uma das principais características de sua obra ficcional: a reconstrução
de laços entre registo oral e escrito.
Em
doze pequenos contos, um rol de personagens esfarrapados e alheios ao palco
principal dos acontecimentos narra, de seu ponto de vista marginal, histórias
que flertam com o mágico e com o absurdo sem, no entanto, se desviarem
completamente do plano factual.
Ao
promover uma espécie de vertigem, sob efeito da qual não se pode afirmar se uma
narrativa é absurda ou se absurda é a realidade de que ela trata, o autor
apresenta a perplexidade como ponto de partida para o fazer literário.
Excerto:
"O que mais dói na miséria é a ignorância
que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens
abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada
essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes. Estas
estórias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de
verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do
mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes que vazaram o sol.
Outras foram asas do meu voo de escrever. A umas e a outras dedico este desejo
de contar e de inventar."
Cada homem é uma raça
Neste
livro, que reúne onze contos, publicado originalmente em 1990, Mia Couto prova mais
uma vez que é um escritor sobretudo generoso. Os indivíduos são sempre objeto
de fascínio e a descrição das suas vidas não traz qualquer julgamento.
Com
uma escrita poética inconfundível, que resulta num português com a melodia das
línguas africanas, apresenta-nos um rico universo de vivências de figuras
moçambicanas. Se no conto “A Rosa Caramela” acompanhamos os dissabores de uma
mulher corcunda que enlouqueceu depois de ter sido abandonada ao pé do altar,
em “A princesa russa” a situação é de uma estrangeira que se vê num país
desconhecido e com um marido hostil, e se alia a um dos seus empregados nativos
para sobreviver.
“A
lenda da noiva e do forasteiro” e “O embondeiro que sonhava pássaros” são
exemplos dos contos mágicos e exuberantes de Mia, ao passo que “O apocalipse
privado do tio Geguê” e “Os mastros de Paralém” têm um cunho político mais
claro.
Excerto:
Inquirido sobre a sua raça,
respondeu:
— A minha raça sou eu, João
Passarinheiro.
Convidado a explicar-se,
acrescentou:
— Minha raça sou eu mesmo. A pessoa
é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia.
(Extrato
das declarações do vendedor de pássaros)
Estórias abensonhadas
Depois
de Terra Sonâmbula estas estórias
fazem regressar o imaginário moçambicano pela mão de Mia Couto. Reúnem-se aqui
contos em que se inscreve o mesmo estilo e a mesma capacidade de sonhar já
consagrados em obras anteriores.
São
breves estórias em que Mia Couto capta o renascimento de um país em transição, depois
da assinatura do Acordo de Paz que pôs fim à guerra civil que assolou
Moçambique entre 1976 e 1992.
Em
todas as estórias se reconhece o trabalho profundamente pessoal de recriação da
linguagem, o aproveitamento literário da fala popular moçambicana e o pleno
exercício da poesia. Numa prosa poética e carregada das tradições orais africanas,
o autor tece pequenas fábulas e registos que, sem irromper em grandes
acontecimentos, capturam os movimentos íntimos dessa passagem.
Contos do nascer da terra
A
maior parte das histórias que compõem Contos
do nascer da Terra foi publicada originalmente em jornais e revistas em
1996, e depois adaptada pelo escritor para este livro, que inclui também alguns
contos inéditos. Ao todo são 35 histórias breves que se baseiam no quotidiano
quase mágico de Moçambique e exploram a sonora linguagem do português africano,
revelando na escrita a identidade de um povo e o domínio muito próprio da
cultura e da criatividade literária.
Excerto
do conto “A menina sem palavra”:
«Era uma vez uma menina que pediu ao
pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para
longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para
alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O
planeta era leve como uma baloa. Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do
céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O
mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de
prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário em
todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares.»
Na Berma de Nenhuma Estrada
e Outros Contos
A reunião
de um conjunto de 38 histórias, escolhidas pelo autor entre textos publicados
em revistas e jornais portugueses e moçambicanos ao longo de vários anos.
São
histórias de um universo mágico, onde o fantástico e o sobrenatural coexistem
com o quotidiano, com personagens intensas e uma capacidade de efabulação
extraordinária, que nos prendem e nos encantam.
A
intensidade das personagens, a multiplicidade de registos em que as várias
tramas ocorrem, o universo do fantástico e do sobrenatural coexistindo em
perfeita sintonia com o dia-a-dia da tradição, da cultura e da vivência
experienciadas, a capacidade de efabulação, a oralidade que emana da palavra
escrita transformando-a em puro som, são portos a que acostamos e que nunca
desvendamos por completo.
E
donde emanam estas histórias? "Vêm
da berma de nenhuma estrada. Quero inventar um sítio onde me invente a mim, um
sítio onde tudo seja possível outra vez, onde a palavra possa ter essa dimensão
mágica. É desse não lugar que surge a escrita, mas ele pertence a um lugar meu,
que é Moçambique, a minha infância." (Mia Couto, em entrevista ao
portal ajanela.com)
Cronicando
Neste
livro reúnem-se crónicas com que o escritor moçambicano colaborou com a
imprensa de Moçambique durante os dois últimos anos da década de 80. Este
conjunto de textos mereceu o Prémio Anual de Jornalismo Areosa Pena, atribuído
pela Organização dos Jornalistas Moçambicanos em 1989.
Mais
do que crónicas, estes textos são pequenos contos condensados de forma a se
enquadrarem no espaço dos jornais a que se destinavam. Aos textos inseridos nos
jornais de Moçambique, o autor acrescentou outros inéditos. Uns e outros estão
profundamente marcados pela arte de recriar a língua portuguesa que caracteriza
toda a escrita deste autor africano.
Pensageiro frequente
Originalmente
concebidos como artigos para a revista Índico,
das Linhas Aéreas de Moçambique, estes 26 textos ganham autonomia e atuam como
breves mas indeléveis peças literárias. “Textos ligeiros, cujo destinatário não
é exatamente um leitor «típico», mas um passageiro que pretende vencer o tempo
e, tantas vezes, o medo. [… o meu desejo foi ] fazer com que o meu país voasse
pelos dedos do viajante, numa visita às múltiplas identidades que coexistem
numa única nação.”
O
autor diz que a bordo de um avião torna-se um pensageiro, ou seja, um
passageiro que apesar de frequente continua a sentir o mesmo medo a cada
viagem. Para entreter o medo põe-se a escrever. Estas crónicas surgem na
sequência de alguns desses voos e foram feitas a pensar no passageiro que entre
fusos horários procura uma distração.
Terra Sonâmbula
Primeiro
romance de Mia Couto, Terra Sonâmbula
é uma verdadeira aula sobre a velha arte de contar histórias. No Moçambique
pós-independência, mergulhado em uma devastadora guerra civil, um velho e um
menino empreendem uma viagem recheada de fantasias míticas numa camioneta incendiada
numa estrada poeirenta que serve de abrigo ao velho Tuahir e ao menino
Muidinga, em fuga da guerra civil devastadora que alastra por todo o lado em
Moçambique.
O
veículo está cheio de corpos carbonizados. Mas há também um outro corpo à beira
da estrada, junto a uma mala que abriga os "cadernos de Kindzu", o longo
diário do morto em questão. A partir daí, duas histórias são narradas
paralelamente: a viagem de Tuahir e Muidinga e, em flashback, o percurso de
Kindzu em busca dos “naparamas”, guerreiros tradicionais, abençoados pelos
feiticeiros, que são, aos olhos do garoto, a única esperança contra os senhores
da guerra.
Ao
explorar os efeitos devastadores da guerra civil pelo olhar de um negro de uma
aldeia, Kindzu, que fala a língua portuguesa, Mia Couto revela que o
colonialismo não desapareceu com a obtenção da independência e que a
persistência da relação colonial afeta ainda os espíritos dos moçambicanos.
Terra Sonâmbula é um romance em abismo, escrito
numa prosa poética em que Mia Couto se vale também de recursos do realismo
mágico e da arte narrativa tradicional africana para compor esta fábula, que
nos ensina que sonhar, mesmo nas condições mais adversas, é um elemento
indispensável para se continuar vivendo.
Em
2006, este romance foi adaptado ao cinema pela realizadora Teresa Prata, numa co-produção
Filmes de Fundo e ZDF/ARTE, com rodagem em Portugal/ Moçambique/ França/
Alemanha
O filme
recebeu os seguintes prémios:
International
Film Festival Kerala, Índia (2008) – Prémio FIPRESCI
Pune
International Film Festival, Índia (2008) – Melhor Realização
FAMAFEST,
Portugal (2008) – Prémio da Lusofonia
Asian, African and Latin American Film Festival, Milão
(2008) – Prémio SIGNIS
Indie
Lisboa, Portugal (2008) – Prémio do público e menção honrosa da Amnistia
Internacional
Festival
Internacional de Cinema de Bursa, Turquia (2008) – Melhor Argumento
A Varanda do Frangipani
A
narrativa de A Varanda do Frangipani
decorre na Fortaleza de S. Nicolau, algures em Moçambique, vinte anos após a
Independência, depois dos acordos de paz de 1992. A fortaleza há muito que
deixou de ser reduto de defesa e ocupação estrangeira para se transformar num
asilo de velhos. A trama policial, as reflexões sobre a guerra e sobre a paz, o
Universo mágico, a riqueza de personagens, aliados a uma narrativa pujante e
amadurecida, fazem deste livro uma das mais belas obras de Mia Couto.
O
romance é narrado pelo carpinteiro Ermelindo Mucanga, que morreu às vésperas da
Independência, quando trabalhava nas obras de restauro da Fortaleza de S.
Nicolau. Ele é um "xipoco", um fantasma que vive numa cova sob a
árvore de frangipani na varanda da fortaleza colonial.
As
autoridades do país querem transformar Mucanga em herói nacional, mas ele
pretende, ao contrário, morrer definitivamente. Para tanto, precisa
"remorrer". Então, seguindo conselho de seu pangolim (uma espécie de
tamanduá africano), encarna no inspetor de polícia Izidine Naíta, que está a
caminho da Fortaleza para investigar a morte do diretor.
Mais
de vinte anos depois da independência de Moçambique, quando a guerra civil já
arrefeceu, a Fortaleza é um lugar em que convergem heranças, memórias e
contradições de um país novo e ao mesmo tempo profundamente ligado às tradições
e aos mitos ancestrais. Da sua varanda pode-se enxergar o horizonte. Este
romance de Mia Couto esboça, assim, uma saída utópica para um país em
reconstrução.
Mar me quer
“Lançamos
o barco, sonhamos a viagem: quem viaja é sempre o mar.”
Uma
história de três gerações de uma família narrada em oito curtos capítulos.
Cada um deles é introduzido
por um dos “ditos” do avô Celestiano, muitos deles supostamente baseados em
provérbios da nação macua, uma das etnias mais antigas, ao norte de Moçambique.
Aqui encontramos crenças e vivências de gentes moçambicanas que vivem no
litoral de Moçambique e usam o mar para lhe roubarem o peixe que os alimenta. E
é com o mar que se estabelecem relações de vida e de morte, é o mar que
determina esse desenrolar de (a)casos fulcrais para as personagens.
Excerto:
“Um dia o padre Nunes me falou de
Luarmina, seus brumosos passados. O pai era um grego, um desses pescadores que
arrumou rede em costas de Moçambique, do lado de lá da baía de S. Vicente. Já
se antigamentara há muito. A mãe morreu pouco tempo depois. Dizem que de
desgosto. Não devido da viuvez, mas por causa da beleza da filha. Ao que
parece, Luarmina endoidava os homens graúdos que abutreavam em redor da casa. A
senhora maldizia a perfeição de sua filha. Diz-se que, enlouquecida, certa
noite intentou de golpear o rosto de Luarmina. Só para a esfeiar e, assim,
afastar os candidatos. Depois da morte da mãe, enviaram Luarmina para o lado de
cá, para ela se amoldar na Missão, entregue a reza e crucifixo. Havia que
arrumar a moça por fora, engomá-la por dentro. E foi assim que ela se dedicou a
linhas, agulhas e dedais. Até se transferir para sua atual moradia, nos
arredores de minha existência.”
Vinte e zinco
“Vinte e cinco é para vocês que vivem em bairros de cimento
para nós, negros pobres que vivemos
na madeira e zinco, o nosso dia
ainda está para vir.”
(Jessumina, a adivinhadora)
Este
livro surgiu de uma iniciativa da Editorial Caminho para assinalar o 25º
Aniversário do 25 de Abril. Entre personagens fantásticas que povoam este livro,
Mia Couto conta-nos como foi o 25 de abril vivido em Moçambique através de uma
espécie de diário dos últimos dias de um agente da PIDE e da sua família. Uma
viagem entre fantasmas e medos dos que viviam na «casa grande» e os que viviam
sob os telhados de zinco.
O último voo do flamingo
Tizangara,
primeiros anos do pós-guerra. Nesta vila tudo parecia correr bem. Os capacetes
azuis já haviam chegado para vigiarem o processo de paz, e o dia a dia da
população corria numa aparente normalidade. Mas por razões que quase todos
desconheciam, esses mesmos capacetes azuis começaram, de súbito, a explodir.
Massimo Risi, o soldado italiano das Nações Unidas destacado para investigar
estas estranhas explosões, chega a Tizangara. Colocam-lhe um tradutor à
disposição, e é através do relato deste que tomamos conhecimento dos factos.
Entramos num mundo de vivos e de mortos, de realidade e de fantasia, de
feitiços e de sobrenatural. A verdade e a ficção passam por nós em personagens
densamente construídas, de que o feiticeiro Andorinho, a prostituta Ana
Deusqueira, o padre Muhando, o administrador Estêvão Jonas e a sua mulher
Ermelinda, a velha-moça Temporina, o velho Sulplício, são apenas alguns
exemplos... O mistério adensa-se. Os soldados da paz morreram ou foram mortos?
Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra
O
estudante universitário Marianinho volta à ilha de Luar-do-Chão depois de anos
de ausência. O seu retorno é um imperativo: ele fora incumbido de comandar as
cerimónias fúnebres do avô Dito Mariano, de quem recebera o mesmo nome. Neto
favorito do patriarca, o rapaz chega à ilha e vê-se no centro de uma série de
intrigas e de segredos familiares, que envolvem o seu pai, Fulano Malta, a avó
Dulcineusa, os tios Abstinêncio, Ultímio e Admirança, e também as nebulosas
circunstâncias em torno da morte da sua mãe, Mariavilhosa.
Aos
poucos, Marianinho percebe que voltou à ilha para um renascimento. Enquanto
aguarda pela cerimónia, ele é testemunha de estranhas visitações na forma de
pessoas e de cartas que lhe chegam do outro lado do mundo e descobre que o
falecimento do avô permanece estranhamente incompleto e esconde desígnios que
escapam à força dos homens - como tudo nessa enigmática Luar-do Chão, onde um
rio armazena a memória dos espíritos e a terra sofre com feitiços arcaicos e
modernos. São revelações de um universo dominado por uma espiritualidade que
ele vai reaprendendo. À medida que se apercebe desse universo frágil e
ameaçado, ele redescobre uma outra história para a sua própria vida e para a da
sua terra. A sua tarefa é encontrar uma forma de levar adiante uma história
que, além de pessoal e familiar, na África pós-colonial é também política e de
destino humano. Trata-se de um momento de passagem, crucial para o protagonista
e para o seu lugar de origem. Luar-do-Chão encontra-se num estado de abandono,
decadência e miséria. Trata-se também de um impasse cultural, religioso e
político, que guarda correspondência com a situação social da África de hoje.
Em
2005, o realizador português José Carlos de Oliveira dirigiu e produziu a adaptação
cinematográfica deste romance. Com argumento de António Cabrita, José Carlos de
Oliveira e Luís Carlos Patraquim, o filme recebe o título “Um Rio”.
Venenos de Deus, remédios do diabo
O
jovem médico português Sidónio Rosa, perdido de amores pela mulata moçambicana
Deolinda, que conheceu em Lisboa num congresso médico, deslocou-se como
cooperante para Moçambique em busca da sua amada. Em Vila Cacimba, onde
encontra os pais dela, espera pacientemente que ela regresse do estágio que
está a frequentar algures. Mas regressará ela algum dia?
Entretanto
vão-se-lhe revelando, por entre a névoa que a cobre, os segredos e mistérios,
as histórias não contadas de Vila Cacimba, um lugarejo imerso em poeira e cacimbas
(neblinas) enganadoras. Aqui encontramos a família de Deolinda: o pai, Bartolomeu
Sozinho, é um velho mecânico naval moçambicano, aposentado do trabalho, mas não
dos sonhos ardentes e dos pesadelos ressentidos que elabora no seu escuro
quarto de doente terminal. A narrativa entrelaça a vida de Bartolomeu, da sua
rancorosa mulher, Munda, da ausente e quase mitológica Deolinda, e ainda de
Suacelência, o suarento e corrupto administrador de Vila Cacimba, e sua
Esposinha, a misteriosa mensageira do vestido cinzento espalhando as flores do
esquecimento. São vidas feitas de mentiras e ilusões que tornam difícil diferenciar
o sonho da realidade.
Jesusalém
"A vida é demasiado preciosa para ser
esbanjada num mundo desencantado."
Jesusalém é a história de Mwanito, o menino.
Um menino em África, terra de guerra, solidão e encanto. Jesusalém é também a
terra sem tempo inventada por Silvestre Vitalício, pai de Mwanito que, fugido
da cidade, procura a libertação numa antiga propriedade colonial. Junto com
eles segue Ntunzi, o irmão mais velho e Zacarias, o antigo soldado que combateu
do lado errado de todas as guerras.
Vitalício
foge da cidade mas também da vida, da culpa e do tempo. Jesusalém seria a terra
sem tempo nem dono, onde a solidão resgataria todas as mágoas. Ali, onde não há
mulheres nem mundo, tudo é batizado de novo e só Vitalício decide o que ali
acontece. De preferência, procura que nada aconteça porque só o vazio faria
sentido. O vazio e o silêncio.
O
papel central do romance é assumido por Mwanito, o “afinador de silêncios”.
Sobre isto, afirmou Mia Couto na apresentação da obra: “Em África, os silêncios
são parte da conversa. O silêncio é uma outra maneira da palavra viver e há
coisas que não podem ser ditas de outra maneira”. Mwanito personifica a paz, a
única paz que Vitalício encontra e, ao mesmo tempo, a sua única ligação ao
passado.
No
entanto, não é possível fugir ao tempo nem ao mundo; é nesse aspeto que Jesusalém é uma história desencantada,
onde a escrita poética e belíssima de Mia Couto encontra terreno fértil. A
literatura ao lado do sofrimento, sem o qual não consegue viver.
A confissão da leoa
Um
acontecimento real - as sucessivas mortes de pessoas provocadas por ataques de
leões numa remota região do norte de Moçambique - é pretexto para Mia Couto
escrever este surpreendente romance. Não tanto sobre leões e caçadas, mas sobre
homens e mulheres vivendo em condições extremas.
A confissão da leoa, através da versão de Mariamar,
habitante da aldeia de Kulumani, e do diário de Arcanjo Baleeiro, o caçador
contratado para matar os leões, vai expondo diante dos nossos olhos como a
guerra, a fome, a superstição, podem transformar os homens em animais
selvagens.
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