menu

domingo, 1 de julho de 2018

Mia Couto - sugestões de leitura

(© Maria José Cabral)

Do catálogo da Biblioteca do Externato Cooperativo da Benedita, apresentamos as seguintes sugestões de leitura da obra do escritor moçambicano Mia Couto:

Raiz de orvalho e outros poemas


A edição portuguesa de Raiz de Orvalho e Outros Poemas reúne poemas com datas diversas, com um conjunto de novos poemas (todos da década de 80) e seleção de outros que faziam parte da edição moçambicana, publicada em Maputo, em 1983, com o título Raiz de Orvalho.
Segundo o próprio autor, alguns não resistiram ao tempo, noutros ele próprio não se reconhece já. Mas todos estes versos fazem parte do seu percurso. E daqui ele partiu para desvendar outros terrenos. Mas (e ainda segundo o próprio Mia), se sem esta escrita nunca teria experimentado outras dimensões da palavra, nós nunca poderíamos ter partilhado da beleza comovente das imagens, da música doce e profunda dos vocábulos, da palavra certa que só ele encontrou e que tantas vezes quisemos ser nós a dizer, das cores profundas e intensas das emoções. Esta é uma poesia única, de alegria, de desespero e de amor, de solidariedade e humildade, de qualidade rara, porque sentida e escrita e lida à flor da pele. Uma experiência enriquecedora para quem a partilha. Um privilégio para quem nela se fundir.

Vozes anoitecidas


Publicado pela primeira vez em 1986, Vozes anoitecidas projetou Mia Couto para o mundo. Conhecido até então por seu trabalho como jornalista e poeta, o autor - hoje tido como um dos mais influentes escritores da língua portuguesa - lançou aqui as bases daquela que viria a ser uma das principais características de sua obra ficcional: a reconstrução de laços entre registo oral e escrito.

Em doze pequenos contos, um rol de personagens esfarrapados e alheios ao palco principal dos acontecimentos narra, de seu ponto de vista marginal, histórias que flertam com o mágico e com o absurdo sem, no entanto, se desviarem completamente do plano factual.
Ao promover uma espécie de vertigem, sob efeito da qual não se pode afirmar se uma narrativa é absurda ou se absurda é a realidade de que ela trata, o autor apresenta a perplexidade como ponto de partida para o fazer literário.
Excerto:
"O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes. Estas estórias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas do meu voo de escrever. A umas e a outras dedico este desejo de contar e de inventar."

Cada homem é uma raça


Neste livro, que reúne onze contos, publicado originalmente em 1990, Mia Couto prova mais uma vez que é um escritor sobretudo generoso. Os indivíduos são sempre objeto de fascínio e a descrição das suas vidas não traz qualquer julgamento.
Com uma escrita poética inconfundível, que resulta num português com a melodia das línguas africanas, apresenta-nos um rico universo de vivências de figuras moçambicanas. Se no conto “A Rosa Caramela” acompanhamos os dissabores de uma mulher corcunda que enlouqueceu depois de ter sido abandonada ao pé do altar, em “A princesa russa” a situação é de uma estrangeira que se vê num país desconhecido e com um marido hostil, e se alia a um dos seus empregados nativos para sobreviver.
“A lenda da noiva e do forasteiro” e “O embondeiro que sonhava pássaros” são exemplos dos contos mágicos e exuberantes de Mia, ao passo que “O apocalipse privado do tio Geguê” e “Os mastros de Paralém” têm um cunho político mais claro.
Excerto:
Inquirido sobre a sua raça, respondeu:
— A minha raça sou eu, João Passarinheiro.
Convidado a explicar-se, acrescentou:
— Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia.
(Extrato das declarações do vendedor de pássaros)

Estórias abensonhadas


Depois de Terra Sonâmbula estas estórias fazem regressar o imaginário moçambicano pela mão de Mia Couto. Reúnem-se aqui contos em que se inscreve o mesmo estilo e a mesma capacidade de sonhar já consagrados em obras anteriores.

São breves estórias em que Mia Couto capta o renascimento de um país em transição, depois da assinatura do Acordo de Paz que pôs fim à guerra civil que assolou Moçambique entre 1976 e 1992.
Em todas as estórias se reconhece o trabalho profundamente pessoal de recriação da linguagem, o aproveitamento literário da fala popular moçambicana e o pleno exercício da poesia. Numa prosa poética e carregada das tradições orais africanas, o autor tece pequenas fábulas e registos que, sem irromper em grandes acontecimentos, capturam os movimentos íntimos dessa passagem.

Contos do nascer da terra


A maior parte das histórias que compõem Contos do nascer da Terra foi publicada originalmente em jornais e revistas em 1996, e depois adaptada pelo escritor para este livro, que inclui também alguns contos inéditos. Ao todo são 35 histórias breves que se baseiam no quotidiano quase mágico de Moçambique e exploram a sonora linguagem do português africano, revelando na escrita a identidade de um povo e o domínio muito próprio da cultura e da criatividade literária.
Excerto do conto “A menina sem palavra”:
«Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa. Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário em todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares.»

Na Berma de Nenhuma Estrada e Outros Contos


A reunião de um conjunto de 38 histórias, escolhidas pelo autor entre textos publicados em revistas e jornais portugueses e moçambicanos ao longo de vários anos.

São histórias de um universo mágico, onde o fantástico e o sobrenatural coexistem com o quotidiano, com personagens intensas e uma capacidade de efabulação extraordinária, que nos prendem e nos encantam.
A intensidade das personagens, a multiplicidade de registos em que as várias tramas ocorrem, o universo do fantástico e do sobrenatural coexistindo em perfeita sintonia com o dia-a-dia da tradição, da cultura e da vivência experienciadas, a capacidade de efabulação, a oralidade que emana da palavra escrita transformando-a em puro som, são portos a que acostamos e que nunca desvendamos por completo.
E donde emanam estas histórias? "Vêm da berma de nenhuma estrada. Quero inventar um sítio onde me invente a mim, um sítio onde tudo seja possível outra vez, onde a palavra possa ter essa dimensão mágica. É desse não lugar que surge a escrita, mas ele pertence a um lugar meu, que é Moçambique, a minha infância." (Mia Couto, em entrevista ao portal ajanela.com)

Cronicando


Neste livro reúnem-se crónicas com que o escritor moçambicano colaborou com a imprensa de Moçambique durante os dois últimos anos da década de 80. Este conjunto de textos mereceu o Prémio Anual de Jornalismo Areosa Pena, atribuído pela Organização dos Jornalistas Moçambicanos em 1989.
Mais do que crónicas, estes textos são pequenos contos condensados de forma a se enquadrarem no espaço dos jornais a que se destinavam. Aos textos inseridos nos jornais de Moçambique, o autor acrescentou outros inéditos. Uns e outros estão profundamente marcados pela arte de recriar a língua portuguesa que caracteriza toda a escrita deste autor africano.

Pensageiro frequente



Originalmente concebidos como artigos para a revista Índico, das Linhas Aéreas de Moçambique, estes 26 textos ganham autonomia e atuam como breves mas indeléveis peças literárias. “Textos ligeiros, cujo destinatário não é exatamente um leitor «típico», mas um passageiro que pretende vencer o tempo e, tantas vezes, o medo. [… o meu desejo foi ] fazer com que o meu país voasse pelos dedos do viajante, numa visita às múltiplas identidades que coexistem numa única nação.”
O autor diz que a bordo de um avião torna-se um pensageiro, ou seja, um passageiro que apesar de frequente continua a sentir o mesmo medo a cada viagem. Para entreter o medo põe-se a escrever. Estas crónicas surgem na sequência de alguns desses voos e foram feitas a pensar no passageiro que entre fusos horários procura uma distração.

Terra Sonâmbula


Primeiro romance de Mia Couto, Terra Sonâmbula é uma verdadeira aula sobre a velha arte de contar histórias. No Moçambique pós-independência, mergulhado em uma devastadora guerra civil, um velho e um menino empreendem uma viagem recheada de fantasias míticas numa camioneta incendiada numa estrada poeirenta que serve de abrigo ao velho Tuahir e ao menino Muidinga, em fuga da guerra civil devastadora que alastra por todo o lado em Moçambique.
O veículo está cheio de corpos carbonizados. Mas há também um outro corpo à beira da estrada, junto a uma mala que abriga os "cadernos de Kindzu", o longo diário do morto em questão. A partir daí, duas histórias são narradas paralelamente: a viagem de Tuahir e Muidinga e, em flashback, o percurso de Kindzu em busca dos “naparamas”, guerreiros tradicionais, abençoados pelos feiticeiros, que são, aos olhos do garoto, a única esperança contra os senhores da guerra.
Ao explorar os efeitos devastadores da guerra civil pelo olhar de um negro de uma aldeia, Kindzu, que fala a língua portuguesa, Mia Couto revela que o colonialismo não desapareceu com a obtenção da independência e que a persistência da relação colonial afeta ainda os espíritos dos moçambicanos.
Terra Sonâmbula é um romance em abismo, escrito numa prosa poética em que Mia Couto se vale também de recursos do realismo mágico e da arte narrativa tradicional africana para compor esta fábula, que nos ensina que sonhar, mesmo nas condições mais adversas, é um elemento indispensável para se continuar vivendo.
Em 2006, este romance foi adaptado ao cinema pela realizadora Teresa Prata, numa co-produção Filmes de Fundo e ZDF/ARTE, com rodagem em Portugal/ Moçambique/ França/ Alemanha
O filme recebeu os seguintes prémios:
International Film Festival Kerala, Índia (2008) – Prémio FIPRESCI
Pune International Film Festival, Índia (2008) – Melhor Realização
FAMAFEST, Portugal (2008) – Prémio da Lusofonia
Asian, African and Latin American Film Festival, Milão (2008) – Prémio SIGNIS
Indie Lisboa, Portugal (2008) – Prémio do público e menção honrosa da Amnistia Internacional
Festival Internacional de Cinema de Bursa, Turquia (2008) – Melhor Argumento


A Varanda do Frangipani


A narrativa de A Varanda do Frangipani decorre na Fortaleza de S. Nicolau, algures em Moçambique, vinte anos após a Independência, depois dos acordos de paz de 1992. A fortaleza há muito que deixou de ser reduto de defesa e ocupação estrangeira para se transformar num asilo de velhos. A trama policial, as reflexões sobre a guerra e sobre a paz, o Universo mágico, a riqueza de personagens, aliados a uma narrativa pujante e amadurecida, fazem deste livro uma das mais belas obras de Mia Couto.
O romance é narrado pelo carpinteiro Ermelindo Mucanga, que morreu às vésperas da Independência, quando trabalhava nas obras de restauro da Fortaleza de S. Nicolau. Ele é um "xipoco", um fantasma que vive numa cova sob a árvore de frangipani na varanda da fortaleza colonial.
As autoridades do país querem transformar Mucanga em herói nacional, mas ele pretende, ao contrário, morrer definitivamente. Para tanto, precisa "remorrer". Então, seguindo conselho de seu pangolim (uma espécie de tamanduá africano), encarna no inspetor de polícia Izidine Naíta, que está a caminho da Fortaleza para investigar a morte do diretor.
Mais de vinte anos depois da independência de Moçambique, quando a guerra civil já arrefeceu, a Fortaleza é um lugar em que convergem heranças, memórias e contradições de um país novo e ao mesmo tempo profundamente ligado às tradições e aos mitos ancestrais. Da sua varanda pode-se enxergar o horizonte. Este romance de Mia Couto esboça, assim, uma saída utópica para um país em reconstrução.

Mar me quer


“Lançamos o barco, sonhamos a viagem: quem viaja é sempre o mar.”

Uma história de três gerações de uma família narrada em oito curtos capítulos. Cada um deles é introduzido por um dos “ditos” do avô Celestiano, muitos deles supostamente baseados em provérbios da nação macua, uma das etnias mais antigas, ao norte de Moçambique. Aqui encontramos crenças e vivências de gentes moçambicanas que vivem no litoral de Moçambique e usam o mar para lhe roubarem o peixe que os alimenta. E é com o mar que se estabelecem relações de vida e de morte, é o mar que determina esse desenrolar de (a)casos fulcrais para as personagens.
Excerto:
“Um dia o padre Nunes me falou de Luarmina, seus brumosos passados. O pai era um grego, um desses pescadores que arrumou rede em costas de Moçambique, do lado de lá da baía de S. Vicente. Já se antigamentara há muito. A mãe morreu pouco tempo depois. Dizem que de desgosto. Não devido da viuvez, mas por causa da beleza da filha. Ao que parece, Luarmina endoidava os homens graúdos que abutreavam em redor da casa. A senhora maldizia a perfeição de sua filha. Diz-se que, enlouquecida, certa noite intentou de golpear o rosto de Luarmina. Só para a esfeiar e, assim, afastar os candidatos. Depois da morte da mãe, enviaram Luarmina para o lado de cá, para ela se amoldar na Missão, entregue a reza e crucifixo. Havia que arrumar a moça por fora, engomá-la por dentro. E foi assim que ela se dedicou a linhas, agulhas e dedais. Até se transferir para sua atual moradia, nos arredores de minha existência.”


Vinte e zinco


“Vinte e cinco é para vocês que vivem em bairros de cimento
para nós, negros pobres que vivemos
na madeira e zinco, o nosso dia
ainda está para vir.”
(Jessumina, a adivinhadora)

Este livro surgiu de uma iniciativa da Editorial Caminho para assinalar o 25º Aniversário do 25 de Abril. Entre personagens fantásticas que povoam este livro, Mia Couto conta-nos como foi o 25 de abril vivido em Moçambique através de uma espécie de diário dos últimos dias de um agente da PIDE e da sua família. Uma viagem entre fantasmas e medos dos que viviam na «casa grande» e os que viviam sob os telhados de zinco.

O último voo do flamingo


Tizangara, primeiros anos do pós-guerra. Nesta vila tudo parecia correr bem. Os capacetes azuis já haviam chegado para vigiarem o processo de paz, e o dia a dia da população corria numa aparente normalidade. Mas por razões que quase todos desconheciam, esses mesmos capacetes azuis começaram, de súbito, a explodir. Massimo Risi, o soldado italiano das Nações Unidas destacado para investigar estas estranhas explosões, chega a Tizangara. Colocam-lhe um tradutor à disposição, e é através do relato deste que tomamos conhecimento dos factos. Entramos num mundo de vivos e de mortos, de realidade e de fantasia, de feitiços e de sobrenatural. A verdade e a ficção passam por nós em personagens densamente construídas, de que o feiticeiro Andorinho, a prostituta Ana Deusqueira, o padre Muhando, o administrador Estêvão Jonas e a sua mulher Ermelinda, a velha-moça Temporina, o velho Sulplício, são apenas alguns exemplos... O mistério adensa-se. Os soldados da paz morreram ou foram mortos?

Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra


O estudante universitário Marianinho volta à ilha de Luar-do-Chão depois de anos de ausência. O seu retorno é um imperativo: ele fora incumbido de comandar as cerimónias fúnebres do avô Dito Mariano, de quem recebera o mesmo nome. Neto favorito do patriarca, o rapaz chega à ilha e vê-se no centro de uma série de intrigas e de segredos familiares, que envolvem o seu pai, Fulano Malta, a avó Dulcineusa, os tios Abstinêncio, Ultímio e Admirança, e também as nebulosas circunstâncias em torno da morte da sua mãe, Mariavilhosa.
Aos poucos, Marianinho percebe que voltou à ilha para um renascimento. Enquanto aguarda pela cerimónia, ele é testemunha de estranhas visitações na forma de pessoas e de cartas que lhe chegam do outro lado do mundo e descobre que o falecimento do avô permanece estranhamente incompleto e esconde desígnios que escapam à força dos homens - como tudo nessa enigmática Luar-do Chão, onde um rio armazena a memória dos espíritos e a terra sofre com feitiços arcaicos e modernos. São revelações de um universo dominado por uma espiritualidade que ele vai reaprendendo. À medida que se apercebe desse universo frágil e ameaçado, ele redescobre uma outra história para a sua própria vida e para a da sua terra. A sua tarefa é encontrar uma forma de levar adiante uma história que, além de pessoal e familiar, na África pós-colonial é também política e de destino humano. Trata-se de um momento de passagem, crucial para o protagonista e para o seu lugar de origem. Luar-do-Chão encontra-se num estado de abandono, decadência e miséria. Trata-se também de um impasse cultural, religioso e político, que guarda correspondência com a situação social da África de hoje.

Em 2005, o realizador português José Carlos de Oliveira dirigiu e produziu a adaptação cinematográfica deste romance. Com argumento de António Cabrita, José Carlos de Oliveira e Luís Carlos Patraquim, o filme recebe o título “Um Rio”.


Venenos de Deus, remédios do diabo


O jovem médico português Sidónio Rosa, perdido de amores pela mulata moçambicana Deolinda, que conheceu em Lisboa num congresso médico, deslocou-se como cooperante para Moçambique em busca da sua amada. Em Vila Cacimba, onde encontra os pais dela, espera pacientemente que ela regresse do estágio que está a frequentar algures. Mas regressará ela algum dia?
Entretanto vão-se-lhe revelando, por entre a névoa que a cobre, os segredos e mistérios, as histórias não contadas de Vila Cacimba, um lugarejo imerso em poeira e cacimbas (neblinas) enganadoras. Aqui encontramos a família de Deolinda: o pai, Bartolomeu Sozinho, é um velho mecânico naval moçambicano, aposentado do trabalho, mas não dos sonhos ardentes e dos pesadelos ressentidos que elabora no seu escuro quarto de doente terminal. A narrativa entrelaça a vida de Bartolomeu, da sua rancorosa mulher, Munda, da ausente e quase mitológica Deolinda, e ainda de Suacelência, o suarento e corrupto administrador de Vila Cacimba, e sua Esposinha, a misteriosa mensageira do vestido cinzento espalhando as flores do esquecimento. São vidas feitas de mentiras e ilusões que tornam difícil diferenciar o sonho da realidade.

Jesusalém

"A vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado."

Jesusalém é a história de Mwanito, o menino. Um menino em África, terra de guerra, solidão e encanto. Jesusalém é também a terra sem tempo inventada por Silvestre Vitalício, pai de Mwanito que, fugido da cidade, procura a libertação numa antiga propriedade colonial. Junto com eles segue Ntunzi, o irmão mais velho e Zacarias, o antigo soldado que combateu do lado errado de todas as guerras.
Vitalício foge da cidade mas também da vida, da culpa e do tempo. Jesusalém seria a terra sem tempo nem dono, onde a solidão resgataria todas as mágoas. Ali, onde não há mulheres nem mundo, tudo é batizado de novo e só Vitalício decide o que ali acontece. De preferência, procura que nada aconteça porque só o vazio faria sentido. O vazio e o silêncio.
O papel central do romance é assumido por Mwanito, o “afinador de silêncios”. Sobre isto, afirmou Mia Couto na apresentação da obra: “Em África, os silêncios são parte da conversa. O silêncio é uma outra maneira da palavra viver e há coisas que não podem ser ditas de outra maneira”. Mwanito personifica a paz, a única paz que Vitalício encontra e, ao mesmo tempo, a sua única ligação ao passado.
No entanto, não é possível fugir ao tempo nem ao mundo; é nesse aspeto que Jesusalém é uma história desencantada, onde a escrita poética e belíssima de Mia Couto encontra terreno fértil. A literatura ao lado do sofrimento, sem o qual não consegue viver.

A confissão da leoa


Um acontecimento real - as sucessivas mortes de pessoas provocadas por ataques de leões numa remota região do norte de Moçambique - é pretexto para Mia Couto escrever este surpreendente romance. Não tanto sobre leões e caçadas, mas sobre homens e mulheres vivendo em condições extremas.
A confissão da leoa, através da versão de Mariamar, habitante da aldeia de Kulumani, e do diário de Arcanjo Baleeiro, o caçador contratado para matar os leões, vai expondo diante dos nossos olhos como a guerra, a fome, a superstição, podem transformar os homens em animais selvagens.


Sem comentários:

Enviar um comentário