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sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

"As Horas" e "Mrs. Dalloway", ou quando a literatura se alimenta da literatura



Em 1998, o escritor norte-americano Michael Cunningham (nascido em Cincinnati, a 6 de Novembro de 1952) entrou para a história da literatura com o romance As Horas, pelo qual ganhou o Prémio Pulitzer para ficção e o PEN / Faulkner Award de 1999, e que foi adaptado para o cinema, em 2002, pelo realizador britânico Stephen Daldry.


Michael Cunningham

O livro é uma releitura da obra Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, acompanhando as vidas de Clarissa, editora nova-iorquina, Laura, dona de casa que vive em Los Angeles, e a própria Virginia Woolf. As horas narra um dia na vida destas três mulheres de gerações diferentes, cujas vidas foram mudadas pelo romance Mrs. Dalloway, como se fossem as suas três faces: Virginia escreve-o, Laura lê-o e Clarissa vive-o.
Virginia Woolf vive num subúrbio de Londres em 1923, preparando os manuscritos do seu romance Mrs. Dalloway – ainda nessa fase intitulado The Hours (As Horas); trinta anos depois (nos anos 50 do século XX), este romance será lido por Laura Brown, uma jovem deprimida mãe e dona de casa que vive nos arredores de Los Angeles; no final dos anos 1990, Clarissa Vaughan, editora de livros que vive em Greenwich Village, Nova Iorque, dedica os seus dias a um amigo e ex-amante, Richard, que está a morrer. São três mulheres, em três épocas distintas, com três destinos, ligadas por um romance que irá alterar as suas vidas.
A história de Clarissa é a peça central. O seu apelido, Mrs. Dalloway, foi-lhe dado por Richard, um atormentado poeta homossexual, doente de SIDA em fase terminal. Como no romance original de Virginia Woolf, Clarissa sai para comprar flores e enquanto caminha pelas ruas da cidade reflete sobre a sua vida, reencontra conhecidos e esforça-se para que a festa em homenagem ao prémio literário recebido por Richard seja perfeita.
As questões com que se debatem Virginia Woolf, Laura Brown e Clarissa Vaughan prendem-se essencialmente com o tédio, implantado como uma doença crónica, progressivamente destrutiva, que vai corroendo o quotidiano. O maior legado de Virginia foi a lição de que o mais próximo da ideia de felicidade é viver intensamente cada hora da nossa vida
Laura e Clarissa encontram o caminho para a sobrevivência e estabilidade ao refugiarem-se no trabalho, no reconhecimento do seu valor pessoal e ao tomarem as rédeas da própria vida.
As outras duas personagens, Virginia e Richard são, por sua vez, consumidas pela doença que as afeta e pelo vazio das horas. Optam, no entanto, por fugir-lhes e suprimir a lenta espera dos dias sempre iguais, na antecâmara da morte.


Em 1925, Virginia Woolf publicou Mrs. Dalloway, um dos seus romances mais famosos, inicialmente pensado com o título As Horas, e que narra um dia na vida de Clarissa Dalloway, uma mulher da alta sociedade britânica que vive na Inglaterra pós-Primeira Guerra Mundial.

Criado a partir de dois contos, Mrs. Dalloway in Bond Street e o inacabado The Prime Minister, o romance, cuja ação decorre num único dia de junho (com exceção dos flashbacks e flashforwads), começa com a preparação da festa que Clarissa Dalloway vai dar nessa noite. Numa clara manhã de primavera, Clarissa resolve sair para comprar flores. À medida que caminha pelas ruas de Londres, o bom tempo do dia leva-a a lembrar-se da sua juventude vivida no campo, em Bourton, recolhendo imagens, sensações e ideias, entrelaçadas com as personagens que habitam o seu mundo – o marido, Richard Dalloway, a filha, Elizabeth, e Peter Walsh, amigo de juventude acabado de voltar da Índia. Num outro cenário de Londres, desenrola-se a vida de Septimus Warren Smith, veterano da Primeira Guerra Mundial que sofre de frequentes e indecifráveis alucinações, relacionadas com a morte na guerra do seu grande amigo Evans. Septimus nunca se cruza com Clarissa, mas é como que um seu duplo, com quem a protagonista parece partilhar a mesma consciência num jogo de opostos. Mais tarde, no mesmo dia, após receber a recomendação de internamento forçado num hospital psiquiátrico, Septimus suicida-se, atirando-se de uma janela.
A festa de Clarissa nessa noite é um lento sucesso. Nela ouve falar no suicídio de Septimus e gradualmente passa a admirar esse ato alheio, que vê como uma tentativa de preservar a pureza da sua felicidade.
Ao penetrar no interior de cada personagem, Virgínia Woolf vai tecendo uma imagem integral da vida de Clarissa, mas também da estrutura da sociedade londrina no início dos anos 20, ainda marcada pelo fim da Grande Guerra.

Este romance, que revelou em pleno o talento de Virginia Woolf, a sua perspicácia, a sensibilidade transparente e, sobretudo, a arte suprema de descrever os segredos das almas, é considerado uma obra-prima indiscutível da literatura universal e o primeiro grande romance modernista de Virginia Woolf. Em 2002, foi incluído na lista dos 100 melhores livros de todos os tempos pelo jornal The Guardian, e, em 2005, foi considerado pela revista Time um dos 100 melhores livros escritos em inglês desde 1923.

A publicação, em 1998, do romance de Michael Cunningham ofereceu-nos uma homenagem do autor a Virginia Woolf, tanto no estilo intimista com que escreve, próprio de Woolf, quanto ao colocá-la como uma das protagonistas do livro.

Aquando da publicação de As Horas em Portugal, a jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho escrevia no Jornal Público
"O livro vencedor do Pulitzer não é uma reescrita, é um mergulho no abismo de Virginia Woolf, que traz à tona o que faz dele uma obra: o abismo singular do seu autor, com o seu próprio poeta demente (Richard, que podemos fazer equivaler a Septimus, mas também a Virginia), os seus beijos inesquecíveis (o de Clarissa e Richard, junto a uma lagoa, ao crepúsculo, e, sobretudo, o de Laura e Kitty, ajoelhadas no chão de uma cozinha na Los Angeles do pós-guerra), a sua cidade (da West e da Greenwich Villages, com os seus quiosques de flores, os seus garotos de patins, a sua experiência da sida, a sua sexualidade difusa, as suas horas monótonas, o seu brilho incandescente, as suas horas de desistir e as suas horas de ressuscitar), a Manhattan em que em vez do primeiro-ministro ou da Rainha as estrelas que suscitam burburinho quando saem à rua são Meryl Streep, Vanessa Redgrave ou Susan Sarandon, e em que a filha de Clarissa já não passeará etérea no vestido justo mas usará ténis como tijolos, um piercing e cabelo rapado."

Uma referência final para o filme homónimo que Stephen Daldry realizou para o cinema em 2002, com argumento adaptado de David Hare e com as inesquecíveis interpretações de Nicole Kidman (no papel de Virginia, com o qual ganhou o Oscar de Melhor Atriz em 2003), Julianne Moore (no papel de Laura), Meryl Streep (no papel de Clarissa) e Ed Harris (no papel de Richard).






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