“-
Olha, com toda a confusão do morto já quase me esquecia. Trouxe-te dois livros.
Os
olhos do velho iluminaram-se.
-
De amor?
O
dentista fez que sim.
António
José Bolívar Proaño lia romances de amor, e em cada uma das suas viagens o
dentista abastecia-o de leitura.
-
São tristes? – perguntava o velho.
-
De chorar rios de lágrimas – garantia o dentista.
-
Com pessoas que se amam mesmo?
- Como nunca ninguém amou.”
(O velho que lia romances de amor, págs. 24-25)
Deixou-nos há um ano o escritor chileno que em 1989 surpreendia o mundo com O Velho Que Lia Romances de Amor. Desde então, passaram-se mais de 30 anos e de 25 livros publicados e traduzidos em todo o mundo. E todos, dos mais novos aos mais velhos, aprendemos a ser melhores através dos seus romances ou das suas fábulas que nos chamaram a atenção para temas como o amor, a amizade, a preservação da natureza ou a luta contra as injustiças. Fomos conquistados por uma gaivota e pelo gato que a ensinou a voar, com as rosas de Atacama percorremos paisagens da Lapónia e da Patagónia, num mundo do fim do mundo reencontrámos Moby Dick, enquanto uma outra baleia branca nos levou a uma praia chilena no Sul do Mundo, onde vive o Povo do Mar.
Se
apenas em 1989 publicou o primeiro romance (O
Velho Que Lia Romances de Amor), foi ainda muito jovem, quando frequentava
o Instituto Nacional, que começou a escrever, por influência de uma professora
de História. Em 1969 publicou Crónicas de
Pedro Nadie, uma compilação de contos que em 1970 lhe valeu o Prémio
Literário da Casa das Américas.
A
sua carreira como ativista político começou cedo: aos 15 anos ingressou na
Juventude Comunista do Chile, da qual foi expulso em 1968. Em 1973 aderiu ao
Partido Socialista Chileno.
No golpe militar do dia 11 de Setembro de 1973, que levou ao poder o ditador general Augusto Pinochet, Luís Sepúlveda encontrava-se no Palácio de La Moneda pois era membro da guarda pessoal do presidente Salvador Allende.
Foi feito prisioneiro e julgado por um tribunal militar em fevereiro de 1975, que o acusou de traição à pátria e conspiração subversiva, entre outros crimes. Escapando à pena de morte, habitual em casos semelhantes, foi condenado a vinte e oito anos de cadeia, entrando no estabelecimento prisional político de Temulo, de onde sairia em 1977, graças à persistência da Amnistia Internacional, que conseguiu que a sua pena fosse substituída por oito anos de exílio na Suécia.
Luis Sepúlveda viajou
e trabalhou no Brasil, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Peru. Viveu no Equador
entre os índios Shuar, participando numa missão de estudo da UNESCO.
Na Amazónia, conheceu e tornou-se amigo de Chico Mendes, o brasileiro que fez parte do Movimento Ambientalista Mundial, lutou ao lado dos seringueiros da Bacia Amazónica e foi assassinado em 1988 a mando dos grandes fazendeiros locais. Foi a Chico Mendes, “um dos mais lídimos defensores da Amazónia”, que Luis Sepúlveda dedicou O Velho Que Lia Romances de Amor.
“Antonio José Bolívar Proaño tirou a sua dentadura postiça, guardou-a embrulhada no lenço, e, sem parar de amaldiçoar o gringo que estivera na origem da tragédia, o administrador, os garimpeiros, todos os que insultavam a virgindade da sua Amazónia, cortou com um golpe de machete um grosso ramo e, apoiando-se nele, pôs-se a andar na direção de El Idilio [como ironicamente, ou não, se chama o local onde vive], da sua choça, dos seus romances, que falavam do amor com palavras tão bonitas que às vezes lhe faziam esquecer a barbárie humana.”
(O velho que lia romances de amor, pág. 110)
Em 1979, na Nicarágua, alistou-se na Brigada Internacional Simon Bolívar, a brigada sandinista que lutava contra a ditadura de Anastácio Somoza.
Em
1982, emigrou para Hamburgo, movido pela sua paixão pela literatura alemã. Nos
14 anos em que viveu na Alemanha, colaborou com movimentos ecologistas e, entre
1983 e 1988, foi correspondente da organização ambientalista Greenpeace.
Em
1997, instalou-se em Gijón, em Espanha, na companhia da mulher, a poetisa chilena
Carmen Yáñez.
A
história de amor entre Luis Sepúlveda e Carmen Yáñez começara em 1967, no Chile,
quando ambos pertenciam ao movimento político que apoiou a candidatura de
Salvador Allende à presidência do Chile. Casaram-se em 1971, mas a prisão e o
exílio acabaram por os separar. Na Alemanha, Sepúlveda casou-se pela segunda
vez, com Margarita Seven, mas o casamento não durou. Após a separação, Sepúlveda
mudou-se para Paris e, em 1996, para Gijón, nas Astúrias. Em 1981 reencontrara Carmen
Yáñez, que vivia na Suécia. Mantiveram-se em contacto (a uni-los havia
Carlos-Lenin, o filho nascido no Chile). Voltaram a apaixonar-se. Em 1997,
passam a viver juntos em Gijón. Em 2004, casaram-se pela segunda vez.
Em
Gijón, Luis Sepúlveda fundou e dirigiu o Salão do Livro Ibero-americano,
destinado a promover o encontro de escritores, editores e livreiros
latino-americanos com os seus homólogos europeus.
Após
dezasseis anos de exílio, foi autorizado a regressar ao Chile, depois de
Pinochet abandonar o poder.
Entre
as suas muitas publicações, encontramos obras como Mundo do Fim do Mundo (1989), Patagonia
Express (1995), Diário de um Killer
Sentimental (1996), História de uma
Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar (1996), Encontro de Amor num País em Guerra (1997), As Rosas de Atacama (2000), Hot
Line (2002), Uma História Suja (2004)
e Os Piores Contos dos Irmãos Grimm
(2005), tendo este último sido escrito em parceria com Mario Delgado Aparaín.
Nas obras que se seguiram, O Poder dos Sonhos, em 2006, e Crónicas do Sul, em 2008, encontramos o Chile como tema da narrativa.
Ainda
em 2008, Luis Sepúlveda regressou à ficção com A Lâmpada de Aladino, 13 contos cujos temas vão desde a Alexandria
de Kavafis, o Carnaval em Ipanema, até à fria e chuvosa cidade de Hamburgo,
desde a Patagónia a Santiago do Chile nos anos 60, da recôndita fronteira do
Peru à Colômbia ou ao Brasil.
Em
2009, publicou A Sombra do que Fomos,
pelo qual recebeu o Prémio Primavera de Romance.
Com
Carlo Petrini, fundador do movimento Slow
Food, escreveu em 2014 Uma ideia de
felicidade, uma conversa tranquila onde se interligam memórias,
experiências e histórias de grandes líderes e de heróis do quotidiano, que
convidam à reflexão sobre o que é a felicidade e como conquistá-la...
Em
2016, recebeu o Prémio Eduardo Lourenço (prémio que visa galardoar personalidades ou
instituições com intervenção relevante no âmbito da cooperação e da cultura
ibérica), uma honra que definiu como «uma emoção muito especial».
Em
Portugal, era presença assídua na Feira do Livro de Lisboa e esteve presente em
quase todas as 21 edições do Festival Correntes d’Escritas, na Póvoa do Varzim,
a última das quais entre 18 e 23 de fevereiro de 2020.
A 25
de fevereiro de 2020, já nas Astúrias, Luis Sepúlveda e a mulher, Carmen Yáñez,
apresentaram os primeiros sintomas de Covid-19, dois dias depois de terem
estado no festival literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. A 29 de
fevereiro, receberam a confirmação do diagnóstico, naquele que seria o primeiro
caso de infeção nas Astúrias.
‘Lucho’
(como carinhosamente era tratado pela família e amigos) foi internado no
Hospital Universitário Central de Astúrias, onde faleceu no dia 16 de abril.
Carmen
Yáñez, que sobreviveu e recuperou da doença, escreveu ao marido um poema
emotivo, publicado no jornal regional das Astúrias El Comercio.
Éramos tão felizes e não sabíamos
Éramos tão felizes e não sabíamos
Ignorantes da luz que circundava a inocência
éramos tão felizes amor meu
com o calor das nossas mãos juntas
cruzando todos os caminhos
e rindo-nos dos obstáculos de pedra ou granizo
que tentavam parar esse caminho irresponsável da felicidade.
Éramos tão felizes
e não nos inteirávamos da dimensão da vida.
Da invisível ameaça, da larga sombra do medo,
não o sabíamos nós, irreverentes.
Amando-nos com projeções de futuro.
Hoje já não penso mais além da manhã enquanto espero
a tua prova de vida dita por todos.
Obras de Luis Sepúlveda
(*) na Biblioteca do ECB
Cronicas
de Pedro Nadie (1969)
O
Velho Que Lia Romances de Amor (1989) (*)
Nome
de Toureiro (1994) (*)
Patagónia
Express (1995) (*)
Mundo
do Fim do Mundo (1992) (*)
Encontro
de Amor num País em Guerra (1997) (*)
Diário
de um Killer Sentimental (1998) (*)
As
Rosas de Atacama (2000) (*)
O
General e o Juiz (2002)
O
Poder dos Sonhos (2004) (*)
Os
Piores Contos dos Irmãos Grimm (em coautoria com o escritor uruguaio Mario
Delgado Aparaín) (2004)
Uma
História Suja (2004)
História
de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar (2008) (*)
A
Lâmpada de Aladino (2008) (*)
A
sombra do que fomos (2009) (*)
Histórias
daqui e dali (2010) (*)
Crónicas
do Sul (2011)
História
de um gato e de um rato que se tornaram amigos (2012) (*)
Últimas
notícias do sul (com Daniel Mordzinski) (2012) (*)
História
do caracol que descobriu a importância da lentidão (2013) (*)
Palavras
em tempos de crise (2013) (*)
Uma
ideia de felicidade (com Carlo Petrini) (2014)
A
venturosa história do Usbeque mudo (2015)
História
de um cão chamado Leal (2015)
O
fim da história (2016)
História
de uma baleia branca (2019) (*)
Filmografia
Como
argumentista
1986:
Vivir a los 17
2000:
Tierra del fuego
2002:
Corazón verde
2002:
Nowhere
2004:
Corazón-bajo
Como
realizador
1986:
Vivir a los 17
2002:
Nowhere
2004:
Mano armada
2004:
Corazón-bajo
Como
editor
2004:
Mano armada
2004:
Corazón-bajo
Como
ator
1998:
La Gabbianella e il gatto: Poeta (voz)
2000:
Bibo per sempre: Il Barbone
Como
director de fotografia
2004:
Corazón-bajo
Como
produtor
2004:
Mano armada
Prémios
e distinções
Premio Gabriela Mistral de poesia (1976)
Prémio
Rómulo Gallegos de novela (1978)
Premio
Tigre Juan de novela (1988)
Premio
de relatos cortos «La Felguera» (1990)
Prémio
Primavera de Romance (2009)
Prémio Eduardo Lourenço (2016)
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