Anne
Frank
20
de junho de 1942
Escrever um
diário é uma experiência realmente estranha para uma pessoa como eu. Não só
porque não escrevi nada antes, mas também porque me parece que, mais tarde, nem
eu nem ninguém estará interessado nos devaneios de uma rapariga de treze anos.
Oh, enfim, não importa. Apetece-me escrever e tenho uma necessidade ainda maior
de desabafar todo o tipo de coisas.
No
mês que começa com um dia dedicado à criança, queremos homenagear Anne Frank, a
menina que se tornou um símbolo universal contra a intolerância, além de ter
dado um "rosto" aos milhões de pessoas que morreram no Holocausto.
Não chegando a ser uma verdadeira escritora (Anne morreu antes de completar os
16 anos e apenas nos deixou o seu Diário
e alguns contos de fadas publicados na Holanda e na Alemanha como obra
escrita), o testemunho pungente dos seus últimos anos de vida ainda hoje marca
uma série de gerações e continua a ser uma leitura (quase) obrigatória nas
escolas.
Annelies Marie Frank nasceu no dia 12 de junho de 1929, na
cidade alemã de Frankfurt am Main, na República de Weimar, e morreu em
fevereiro de 1945, no campo de concentração de Bergen-Belsen, vítima do
Holocausto.
A
vitória do Partido Nazi na Alemanha, em 1933, e a consequente ascensão de
Hitler ao poder deram início a um programa político de perseguição e exclusão
dos judeus na sociedade alemã.
Anne
Frank, nascida no seio de uma família judia liberal, ou seja, que não seguia
todos os costumes e tradições do judaísmo, vivendo numa comunidade de cidadãos
judeus e de outras religiões, viu a sua vida ser radicalmente alterada em 1934,
quando o pai, Otto Frank, um empresário na área da indústria alimentar, decide
mudar toda a família para a cidade holandesa de Amesterdão. Após a invasão da Holanda
pelos alemães, em 1940, o governo da ocupação começou a perseguir a população
judaica, implementando leis restritivas e discriminatórias; o registo
obrigatório e a segregação aconteceram logo de seguida.
Quando
fez treze anos, Anne recebeu de presente do pai um livro de autógrafos, com uma
estampa vermelha e branca e com um pequeno cadeado na parte da frente. Anne
Frank, que desde pequena gostava de escrever, decidiu que iria usá-lo como
diário.
“Espero
poder confiar-te tudo, como nunca pude confiar em ninguém, e espero que venhas
a ser uma grande fonte de conforto e apoio.”
Esta
é a frase inscrita na primeira página do diário, no dia 12 de junho de 1942.
A
partir de 20 de junho, cada entrada é iniciada por “Querida Kitty”, pois Anne
quis que o diário, mais do que um registo de factos, fosse como uma amiga a
quem contaria a sua história.
E
é a partir das páginas desse diário, escrito entre 12 de junho de 1942 e 1 de
agosto de 1944, que o mundo ficou a conhecer a história de Anne Frank, não só aspetos
do seu quotidiano, mas também sobre as mudanças que ocorreram na cidade onde
morava após a ocupação alemã dos Países Baixos.
Em
20 de junho de 1942, por exemplo, a menina que sonhava ser atriz, que adorava ver
filmes, mas que foi proibida de o fazer quando os judeus deixaram de ter acesso
a salas de cinema, enumera muitas das restrições que haviam sido colocadas
sobre a vida da população judaica holandesa, que acabam por afetar a sua
família também.
Entretanto,
Anne e a sua irmã Margot (dois anos mais velha) foram proibidas de estudar nas
escolas que frequentavam, tendo direito apenas a frequentar instituições
próprias para judeus.
Em
julho de 1942, Margot recebeu um aviso do Escritório Central de Emigração
Judaica, ordenando que se mudasse imediatamente para um campo de trabalho. Otto
Frank decidiu então esconder a família nuns quartos que existiam numa parte
superior recuada das instalações da empresa familiar Opekta (o Anexo Secreto), dividindo-o com mais
quatro pessoas: a família van Pels (van Daan no Diário) – a mãe Auguste, o pai Hermann, sócio de Otto Frank, e o
filho Peter; e Fritz Pfeffer (Albert Dussel no Diário), um dentista judeu que Otto Frank decide albergar no anexo.
A ajuda de alguns dos seus colaboradores de confiança permitiu-lhe continuar a
dirigir a empresa e abastecer regularmente a família, apesar das restrições do
racionamento.
O Achterhuis (a palavra neerlandesa que
designa a parte de trás de uma casa, ou seja, anexo secreto) era um espaço de
três andares, com entrada a partir dos escritórios da Opekta. Dois quartos
pequenos, com uma casa de banho no primeiro andar, e por cima uma grande sala,
com uma outra pequena ao lado. Nesta menor, havia uma escada que levava ao
sótão. A porta do esconderijo foi coberta por uma estante para garantir que o
lugar permanecesse desconhecido.
Durante
a permanência no anexo, a maior parte do tempo de Anne foi gasta a ler, a ler
muito, e a estudar, fazendo exercícios de matemática e traduções de francês, e
sobretudo a escrever no seu diário.
Além de narrar os eventos do dia-a-dia, as
dificuldades da vida em comum daquelas oito pessoas, escreveu sobre os seus
sentimentos (por exemplo, por Peter van Pels, o jovem de 16 anos a quem dá o
primeiro beijo), as suas crenças e ambições, coisas que não poderia discutir
com ninguém. Ao mesmo tempo, ia acompanhando as notícias que chegavam sobre a
Guerra e o destino dos judeus.
“Se
as coisas estão tão más na Holanda, como será nesses locais distantes e
incivilizados para os alemães os estão a mandar? Partimos do princípio de que a
maioria está a ser assassinada. A rádio inglesa diz que estão a ser gaseados.
Talvez seja a forma mais rápida de morrer. Sinto-me terrivelmente. Os relatos
de Miep destes horrores são tão dilacerantes.” (9
de outubro de 1942)
Perto
do fim da guerra, em 4 de agosto de 1944, o grupo foi traído em circunstâncias
pouco claras e o anexo secreto foi assaltado pela polícia uniformizada alemã. A
família Frank e os outros quatro ocupantes do anexo foram levados durante a
noite para interrogatório, ficando numa casa de detenção, a Huis van Bewaring.
Dois dias depois, foram transportados para Westerbork, campo de concentração de
trânsito para judeus do norte da Holanda, onde já havia mais de 100 mil judeus,
principalmente holandeses e alemães. Considerados criminosos por viverem
clandestinamente, foram enviados para campos de concentração.
Em
3 de setembro de 1944, Anne e Margot foram deportadas para o campo de
concentração de Auschwitz, ali permanecendo até 28 de outubro, quando foram
levadas para o campo de Bergen-Belsen. O pai já tinha sido separado da família
e a mãe, Edith Frank, não foi selecionada e ficou em Auschwitz, morrendo de
fome e exaustão em janeiro de 1945.
Anne
e Margot Frank morreram, provavelmente de tifo, em Bergen-Belsen, num dia
desconhecido no final de fevereiro ou início de março de 1945. Em abril, o
campo seria libertado pelas tropas britânicas.
Otto
Frank foi o único sobrevivente entre os que habitavam o anexo. Regressou a Amesterdão
e descobriu que o diário da filha, bem como fotografias da família e outros
bens pessoais, tinham sido salvos por Miep Gies, uma das secretárias que
trabalhava na empresa e uma das pessoas que ajudaram a família durante o tempo
em que viveram escondidos no anexo.
Após muito esforço, em 1947 Otto conseguiu
publicar o diário que é, desde então, um dos livros mais traduzidos do mundo e
também dos mais polémicos, pois sabe-se que Otto retirou algumas partes do
texto e provavelmente alterou outras deliberadamente, criando uma versão
“editada” ou “autorizada” do diário da filha. Entre 1982 e 2001, foram
publicadas as versões definitivas, reunindo os textos originais que continham
“versões” manuscritas que a própria Anne Frank tinha escrito e que foram sendo
descobertos ao longo dos anos.
Em
1959, foi lançado um filme sobre a vida de Anne Frank, com o título The Diary of Anne Frank. Aclamado pela
crítica, foi vencedor de três Óscares.
Em
3 de maio de 1957, um grupo de cidadãos, incluindo Otto Frank, estabeleceram a
Instituição Anne Frank, num esforço para resgatar o edifício Prinsengracht da
demolição e torná-lo acessível ao público. A Casa de Anne Frank foi aberta em 3 de maio de 1960; é composta pelo
armazém e os escritórios da Opekta e o Anexo Secreto, todos sem mobília para
que os visitantes possam andar pelas várias divisões. Alguns objetos pessoais
dos antigos ocupantes permaneceram, como fotografias de estrelas de cinema
coladas por Anne Frank numa parede, noutra parede as marcas que Otto fazia do
crescimento das filhas, além de um mapa onde gravou o avanço das Forças Aliadas
da Segunda Guerra Mundial. A partir do quarto mais pequeno, que foi o quarto de
Peter van Pels, uma passagem liga o edifício aos dos seus vizinhos, que foram
comprados pela Instituição. Estes outros edifícios são usados para albergar o Diário, bem com exposições temporárias
sobre aspetos do Holocausto e exemplos da intolerância racial no mundo. Em
2014, tornou-se uma das principais atrações turísticas de Amesterdão, recebendo
mais de 1 milhão de visitantes. Desde então, o museu disponibiliza exposições
que já viajaram para 32 países na Europa, Ásia, América do Sul e do Norte.
[Os
excertos aqui transcritos foram retirados de
O Diário de Anne Frank, versão
definitiva. Porto:
Livros do Brasil/Porto Editora, 2015]
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