Giovanni Boccaccio
(por Andrea
del Castagno, San Godenzo 1421 - Florença, 1457)
“Já
tinha chegado o ano de 1348 da fecunda encarnação do filho de Deus, quando a
cidade de Florença, nobre, entre as mais famosas da Itália, foi vítima da
mortal epidemia. Fosse a peste obra de influências astrais ou a consequência
das nossas iniquidades e que Deus, por sua justa cólera a tivesse precipitado
sobre os homens, como punição dos seus crimes, a verdade é que ela se havia
declarado alguns anos antes nos países do Oriente, onde arrastara para a perda
inúmeras vídas humanas. Depois, prosseguindo a sua marcha sem se deter,
propagou-se, para nosso mal, na direcção do Ocidente. Todas as medidas
sanitárias foram sem efeito. Por mais que os guardas especialmente encarregados
disso limpassem a cidade dos montes de imundície, por mais que se proibisse a
entrada a todos os doentes e se multiplicassem as prescrições de higiene, por
mais que se recorresse às súplicas e às orações [...], nada deu resultado. Logo
nos primeiros dias primaveris do ano a que me referi, o terrível flagelo
começou, de maneira surpreendente, a manifestar as suas dolorosas devastações.
[...]
A
intensidade da epidemia aumentou pelo facto de os doentes contagiarem, no seu
contacto diário, os indivíduos ainda sãos, tal como o fogo quando se aproxima
de uma porção de matérias secas ou gordas. E o que ainda propagou mais o
desastre foi não só o facto de a prática com os doentes comunicar o mal e dar a
morte às pessoas sãs, mas o simples contacto com roupas ou o que quer que fosse
que os pestíferos tivessem tocado ou manejado, pois através de tais objectos
logo a peste se transmitia a quem deles se servisse.
[...]
Alguns
pensavam que uma vida sóbria e a abstenção de tudo o que fosse supérfluo se
impunham para combater ataque tão terrível. Formavam pois a sua brigada e
viviam afastados dos outros. Agrupados e reclusos em casas onde não havia
doentes e onde a vida era mais agradável, usando com a maior moderação comidas
delicadas e vinhos requintados, [...] não deixando ninguém falar-lhes,
recusando-se a ouvir qualquer notícia vinda do exterior a respeito de mortes ou
doenças, passavam o tempo a ouvir música ou entretidos com outros prazeres
castos.”
Boccaccio,
Decameron
(edição portuguesa
traduzida por Urbano Tavares Rodrigues para o Círculo de Leitores, s. d.)
Assim
é relatada a Peste Negra por Giovanni Boccaccio
(Toscânia, 1313-1375), o poeta e humanista florentino que, entre 1348 e 1353,
escreveu a obra Decameron, um livro estruturado
em cem novelas que sete raparigas e três rapazes contaram durante dez dias. Estes
dez jovens estão abrigados numa vila isolada de Florença para fugir da Peste Negra,
que então afligia a cidade.
Decameron é um verdadeiro documentário acerca
da epidemia que devastava o Ocidente, apresentando e caracterizando a doença e
as suas manifestações, evolução e sintomas, a ineficácia da religião católica e
de uma medicina quase ou totalmente impotente, as feições, os sentimentos, os
costumes e as ideias da Itália do século XIV, bem como a reação das pessoas à
doença e à perspectiva da morte. É considerado o primeiro livro realista da
literatura, um marco na rutura entre a moral medieval, em que se valorizava o
amor espiritual, e o humanismo, iniciando o registo dos valores terrenos; nele,
não é mais o divino, mas a natureza que dita o móvel da conduta do homem. Nas palavras
de Urbano Tavares Rodrigues, Boccaccio situou-se “entre a alma medieval moribunda e a consciência renascentista”.
Peste Negra é o nome por que ficou conhecida
uma das mais devastadoras pandemias da história humana, ocorrida no século XIV
e que resultou na morte de 75 a 200 milhões de pessoas. Numa época ainda
distante das descobertas científicas na área da Medicina e Farmácia do século
XIX, muito antes de Pasteur, Koch ou Flemming terem contribuído para a redução
da mortalidade e a criação de vacinas, apenas no continente europeu estima-se
que a Peste Negra tenha vitimado pelo menos um terço da população, acontecendo o
pico da doença entre os anos de 1347 e 1350.
Originária
das feitorias genovesas de Caffa, na Crimeia (Mar Negro), a Peste Negra chegou
ao Ocidente no ano de 1347, trazida pelos mercadores que, à medida que
aportavam em várias cidades europeias (cujas condições higiénico-sanitárias
eram muito precárias, com ruas cheias de lixo e esgotos a céu aberto), iam
contaminando as respetivas populações, espalhando-se a doença por toda a Europa
até 1350.
Após
esta data, e até final do século XIV, a doença permaneceu endémica em toda a
Europa, manifestando-se em crises de maior violência cada dez ou quinze anos e
continuando a aparecer de forma intermitente e em pequena escala até
praticamente desaparecer do continente nos inícios do século XIX.
Hoje
esta praga ocorre em menos de 5000 pessoas por ano em todo o mundo. Desde a
década de 1990 a maioria dos novos casos surgiu no continente africano. Em 2013
foram registados 783 casos a nível mundial, contabilizando-se 126 mortes. Os
três países mais endémicos são Madagascar, a República Democrática do Congo e o
Peru.
A
Peste Negra, causada pela bactéria Yersinia
pestis, transmitida ao ser humano através das pulgas (Xenopsylla cheopis) dos ratos-pretos (Rattus rattus) ou outros roedores, é uma peste bubónica que se
complica com as perturbações pulmonares e deve o seu nome ao facto de se
manifestar por vómitos-negros e inchaços arroxeados (os “bubões”,
tumores cutâneos) que apareciam nas virilhas e noutras partes do corpo.
Em Decameron, Bocaccio descreve os sintomas:
"Na
nossa terra, no início da epidemia, quer se tratasse de homens ou de mulheres,
produziam-se certos inchaços nas virilhas ou nas axilas: alguns desses inchaços
tornavam-se do tamanho de uma maçã vulgar, outros como um ovo, outros um pouco
maiores ou mais pequenos. Chamava-se-lhes usualmente bubões. [...] Mais tarde,
os sintomas mudaram e transformaram-se em manchas negras ou lívidas que
apareciam nos braços, nas coxas ou em qualquer outra parte do corpo, de umas
vezes grandes e separadas, de outras muito juntas e pequenas. Tal como o bubão que
fora de início, e continuava a sê-lo, o indício de uma morte certa, também as
manchas o eram para aqueles em que apareciam".
In Boccaccio,
Decameron
(edição portuguesa
traduzida por Urbano Tavares Rodrigues para o Círculo de Leitores, s. d.)
Acreditava-se
também que a doença tinha origem nos “miasmas”, o conjunto de odores fétidos
provenientes de matéria orgânica em putrefação nos solos e lençóis freáticos
contaminados. Por isso, na Idade Média, os chamados “médicos de peste” usavam
um traje de proteção
que consistia numa capa de tecido pesado, que era encerado, e numa máscara com aberturas nos olhos e um
nariz em forma de cone, como um bico de ave, cheio de substâncias aromáticas e de
palha. Estas máscaras foram concebidas para os proteger do ar fétido, que, de
acordo com a teoria miasmática da doença, foi considerado como a causa da
infecção [atualmente a teoria miasmática é considerada obsoleta, sendo
consensual e aceite a teoria microbiana]. Alguns dos materiais perfumados eram
folhas de hortelã, erva-cidreira, cânfora, cravo, âmbar, láudano, mirra ou
pétalas de rosa. A palha fornecia um filtro para o "mau ar".
Estas
roupas terão sido inventadas por Charles de Lorme, em 1619, e usadas pela
primeira vez em Paris, espalhando-se mais tarde por toda a Europa. A maioria dos
médicos da peste também usava um chapéu de aba, que servia para identificar a sua
condição de médico, e um bastão ponteiro de madeira para examinar o paciente
sem a necessidade de contacto.
Alguns
especialistas defendem que a epidemia chegou ao fim graças ao ciclo natural da
doença. Devido à quantidade de mortos, tornou-se mais difícil propagar a
enfermidade. Além disso, muitas cidades interditaram a entrada de estrangeiros,
colocaram os seus doentes em quarentena, de modo que a evitar a transmissão
para outras pessoas, e obrigaram os tripulantes dos navios que chegavam aos
portos a permanecer igualmente de quarentena.
Portugal
A
Peste Negra chegou a Portugal no outono de 1348, durante o reinado de D. Afonso
IV. Num país já fragilizado por uma série de maus anos agrícolas, terá
provocado a morte de cerca de um terço a metade da população, segundo as
estimativas mais credíveis, levando a nação a uma grande desorganização
económica e social. O
rei reagiu prontamente, tendo promulgado legislação a reprimir a mendicidade e
a ociosidade, assim como Leis do Trabalho que, além de obrigarem as pessoas a
trabalhar nos ofícios que desempenhavam antes da Peste e pelos anteriores
salários, vão ainda normalizar práticas sociais, impondo, por exemplo, limites
no tipo de vestuário ou no número de pratos que podem ser consumidos
diariamente pelas diversas ordens sociais.
“Sabei
que fui informado que nessa vila há homens e mulheres que, antes da peste,
ganhavam dinheiro pelo seu trabalho (...) e serviam esse concelho como era
necessário. E que agora, por terem recebido alguns bens por morte de algumas
pessoas, consideram-se tão importantes que não querem trabalhar nos seus
ofícios e serviços que antes faziam. (...)
Mando-vos,
por isso, (...) que obrigueis que cada um trabalhe no ofício e nos serviços que
antes fazia (...) e tabeleis os salários como vos parecer conveniente.”
(Lei
de D.Afonso IV, in Livro das Leis e
Posturas,
apud Ana Lídia Pinto et al., Temas
de História 10, Porto: Porto Editora, 1993 - adaptado)
A Peste
Negra voltou a Portugal várias vezes até ao fim do século XVII. Nenhuma foi tão
devastadora como a do século XIV, mas a Grande Peste de Lisboa em 1569 terá
matado 600 pessoas por dia, ao todo 60 000 habitantes da cidade terão
sucumbido. Em 1899, a peste foi importada para o Porto vinda do Oriente
(provavelmente de Macau, onde grassou desde 1895 até ao fim do século). A
epidemia do Porto foi estudada por Ricardo Jorge, que instituiu as medidas de
Saúde Pública necessárias, e que a conseguiram limitar.
Ricardo Jorge
Ricardo
de Almeida Jorge nasceu no Porto, em 1858, e faleceu em Lisboa, em 1939. Foi médico,
investigador, higienista, professor de Medicina e introduziu em Portugal modernas
técnicas e conceitos de saúde pública.
Foi
Ricardo Jorge que chegou à prova clínica e epidemiológica da peste bubónica que
em 1899 assolou a cidade do Porto, tendo sido esta prova depois confirmada
bacteriologicamente. As operações profiláticas que orientou no sentido de
eliminar a peste, como a evacuação de casas e o isolamento e desinfeção de
domicílios, entre outras, desencadearam a fúria popular que, incentivada por
grupos políticos, obrigaram Ricardo Jorge a abandonar a cidade. Em Outubro de
1899 foi transferido para Lisboa, sendo nomeado Inspetor-Geral de Saúde e,
depois, professor de Higiene da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa.
Em
1903, foi incumbido de organizar e dirigir o Instituto Central de Higiene, que
passaria a ter o seu nome a partir de 1929 e hoje é o Instituto Nacional de
Saúde Doutor Ricardo Jorge.
Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge
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