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domingo, 1 de novembro de 2020

Poemas de António Gedeão

Pedra filosofal

Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida

como outra coisa qualquer,

como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso

em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos

que em verde e oiro se agitam,

como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul.

 

Eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho álacre e sedento,

de focinho pontiagudo,

que fossa através de tudo

num perpétuo movimento.

 

Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel,

arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral,

contraponto, sinfonia,

máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante,

rosa-dos-ventos, Infante,

caravela quinhentista,

que é Cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim,

florete de espadachim,

bastidor, passo de dança,

Colombina e Arlequim,

passarola voadora,

pára-raios, locomotiva,

barco de proa festiva,

alto-forno, geradora,

cisão do átomo, radar,

ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão

na superfície lunar.

 

Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida.

Que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança.



Lágrima de preta

Encontrei uma preta

que estava a chorar

pedi-lhe uma lágrima

para a analisar


Recolhi a lágrima

com todo o cuidado

num tubo de ensaio

bem esterilizado

 

Olhei-a de um lado

do outro e de frente

tinha um ar de gota

muito transparente

 

Mandei vir os ácidos

as bases e os sais

as drogas usadas

em casos que tais

 

Ensaiei a frio

experimentei ao lume

de todas as vezes

deu-me o qu'é costume

 

Nem sinais de negro

nem vestígios de ódio

água (quase tudo)

e cloreto de sódio



Fala do homem nascido

Venho da terra assombrada

do ventre de minha mãe

não pretendo roubar nada

nem fazer mal a ninguém

 

Só quero o que me é devido

por me trazerem aqui

que eu nem sequer fui ouvido

no acto de que nasci

 

Trago boca pra comer

e olhos pra desejar

tenho pressa de viver

que a vida é água a correr

 

Venho do fundo do tempo

não tenho tempo a perder

minha barca aparelhada

solta o pano rumo ao norte

meu desejo é passaporte

para a fronteira fechada

 

Não há ventos que não prestem

nem marés que não convenham

nem forças que me molestem

correntes que me detenham

 

Quero eu e a natureza

que a natureza sou eu

e as forças da natureza

nunca ninguém as venceu

 

Com licença com licença

que a barca se fez ao mar

não há poder que me vença

mesmo morto hei-de passar

com licença com licença

com rumo à estrela polar

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