menu

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Dia 17 do Advento - O meu irmão


"[...] dou-lhe a mão porque sei que também tem os seus medos e talvez pense o que eu penso e quem sabe sinta as mesmas saudades. Com certeza sente as mesmas saudades. Somos parecidos de modos diferentes e, dadas as circunstâncias, esta parecença é surpreendente. Como o sangue nos pode juntar e afastas no mesmo movimento."

Afonso Reis Cabral - O meu irmão. Alfragide: Leya, 2014.

Esta é a história de Miguel, de 40 anos, que nasceu com síndrome de Downou trissomia do cromossoma 21, e do irmão, um ano mais velho, professor universitário da área da Literatura, divorciado e misantropo, e cujo nome nunca saberemos (quanto à idade, percebemos que tem apenas um ano de diferença do irmão). Após a morte dos pais, confronta-se com a questão de saber com quem fica Miguel, surpreendendo (e até certo ponto aliviando) a família, ao chamar a si a grande responsabilidade. A recordação do afeto e da cumplicidade que ambos partilharam na infância leva-o a acreditar que a nova situação acabará por resgatá-lo da aridez em que se transformou a sua vida e redimi-lo da culpa por tantos anos de afastamento.

Numa casa de família, situada no Tojal, uma pequena aldeia de xisto do interior de Portugal, "perto de Arouca e longe de tudo o resto"que faz parte do país deserto que ninguém sabe nem ninguém prevê como um dia será repovoado, assistimos à rememoração da vida em comum destes dois irmãos, incluindo o estranho episódio que ameaçou de forma dramática o seu relacionamento.

Por vezes a narrativa é inundada pelo mundo interior do narrador, dilacerado por aquele irmão tão imprevisível, tão obsessivo e por vezes tão terno. É uma relação em eterna construção, o narrador procura fazer-nos entender o sofrimento de Miguel ao dar-nos uma síntese do seu sofrimento, preso na sua condição, sofrimento de criança porque é a alma que sofre.

Apenas no final do segundo capítulo o leitor percebe a especial condição de Miguel

«Depois de entrar segurando a minha mão, olha para mim e abre um sorriso nos olhos meia-lua, entre constrangido e alegre. Range os dentes de felicidade ou susto ou não sei o quê./Senta-se no sofá levantando o pó. A barriga enrola-se em dois altos encostados um ao outro. Os dedos simulam um estalido quase imperceptível; repletos de calos, têm o mesmo comprimento. As orelhas diminutas sobressaem no cabelo curto. A camisola justa ao pescoço e as mangas reviradas. Os olhos denunciam o aspecto estrangeiro. Não se consegue controlar, mexe-se com ansiedade./Apesar de parecer uma criança envergonhada de dez anos a mexer os dedos e a fazer salamaleques, é bem o meu irmão, na casa dos quarenta, um pouco para o gordo e, claro, mongolóide.» (p. 20).

O Meu Irmão, vencedor por unanimidade do Prémio LeYa 2014, é um romance notável e de grande maturidade literária que, tratando o tema sensível da deficiência, não cede ao sentimentalismo, oferecendo-nos um retrato social objetivo e muitas vezes até impiedoso.

«Eu nascera inteligente e perfeito, ele nascera inimputável e incompleto. Sendo irmãos, não podíamos ter nascido em lados tão diferentes da vida e, no entanto, um de nós conquistara o centro de vida e outro não. O Miguel abdicara de todos os dons antes de nascer e por isso conquistara o paraíso na terra e Deus guiava-o pela mão, aceitando o que ele oferecia. Crescera anjo ferido, na expressão do nosso pai. E eu acrescento: crescera anjo ferido e não sabia disso. Bastava-lhe existir para existir bem, em paz.» (p. 172).

Afonso Reis Cabral nasceu em Lisboa, em 1990, e cresceu no Porto. Escreve desde os 9 anos e em 2005 publicou o livro Condensação, no qual reuniu poemas escritos até aos 15 anos. Licenciou-se em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (tendo recebido o Prémio Mérito e Excelência atribuído ao melhor aluno do curso), fez mestrado na mesma área e tem uma pós-graduação em Escrita de Ficção.

Publicou textos em diversos periódicos. Em 2008 ficou em 8.º lugar no 7th European Student Competition in Ancient Greek Language and Literature, entre mais de 3500 concorrentes de 551 escolas europeias e mexicanas.

Sempre se imaginou a trabalhar na área editorial. Ainda estudante, recebeu uma proposta de trabalho da Editorial Presença, onde seria coordenador do departamento de revisão, orientando trabalhos e distribuindo revisões para os revisores freelancers. Mais tarde, uma oportunidade de emprego na editora Alêtheia permitiu-lhe passar pelas várias fases do processo de edição, revisão, comunicação e até produção.

Em 2014, publicou o primeiro romance, O meu irmão, com o qual venceu o prémio LeYa, sendo o mais jovem autor de sempre na história deste galardão.

Em setembro de 2018, foi publicado o seu segundo romance, Pão de Açúcar, sobre o Caso Gisberta, livro com que, em 2019, venceu o Prémio Literário José Saramago de 2019.

Em setembro de 2019, publicou Leva-me Contigo, livro que descreve a viagem que durante vinte e quatro dias empreendeu sozinho Portugal, a pé, pela mítica Estrada Nacional 2, de Chaves a Faro, onde se cruzou com inúmeras histórias inusitadas que foi partilhando nas redes sociais.



O romance Pão de Açúcar foi inspirado no caso de Gisberta Salce Júnior, a mulher transgénero, originária do Brasil, que em fevereiro de 2006 foi agredida durante vários dias e depois morta por um grupo de rapazes, com idades entre os 12 e os 16 anos, num prédio inacabado do Porto.

O seu fim, no fundo de um poço num edifício abandonado no Porto – conhecido como Pão de Açúcar – despertou a atenção do país. Tanto pela identidade complexa de Gisberta, como pelas circunstâncias da morte, a história chocou e revoltou quem a ouviu ou leu. São os Bombeiros Sapadores do Porto que resgatam do poço de um prédio abandonado um corpo com marcas de agressões e nu da cintura para baixo.

Pão de Açúcar é uma combinação magistral de factos e ficção, com personagens reais e imaginárias meticulosamente desenhadas, que confirma o talento e a maturidade literária deste jovem escritor.




Sem comentários:

Enviar um comentário